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Lucilene Gomes Lima

 

A falta de estabilidade na terra, o espírito aventureiro e arrivista que caracterizaram as relações econômicas no “ciclo da borracha” são, muitas vezes, apontados como falhas que levaram esse sistema extrativista da prosperidade econômica à derrocada. As bases que fundamentavam a lógica desse sistema, entretanto, não se apoiavam numa economia fixa e sim de transplante. A própria estrutura física dos seringais demonstrava que o negócio da borracha exigia apenas uma infra-estrutura primária que possibilitasse ao patrão ou seringalista dirigir o processo de extração do látex baseado numa contabilidade que atava o seringueiro ao trabalho. As condições de moradia do seringalista e do seringueiro eram improvisadas de modo que cumprissem seu papel no sistema extrativista. O tapiri do seringueiro não era exatamente uma moradia, mas o local de trabalho onde ele transformava, num processo rudimentar, o látex extraído das seringueiras em pélas de borracha. O fato de que o sistema não promoveu uma fixação à terra está na razão de seu funcionamento[1], pois se tivesse promovido essa fixação não teria se realizado da forma que se realizou e os próprios elementos que o integravam não teriam tido na pirâmide do sistema extrativo a posição que tiveram. Passaremos a explicitar essas posições a seguir.

 

As firmas importadoras-exportadoras e as casas aviadoras

 

            As bases do sistema extrativista da borracha compunham uma pirâmide em que no topo estavam as firmas importadoras-exportadoras, representantes do capital estrangeiro, mais especificamente dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Alemanha. Essas firmas  movimentavam o capital de giro do ciclo, não permitindo nenhuma base sólida à economia local, como ressalta Antônio Loureiro:

 

As firmas exportadoras eram, na realidade, as detentoras do capital movimentador do ciclo, que poderia ser retirado de circulação, em tempo relativamente rápido, como ocorreu, pois suas transações abrangiam, apenas, a compra da matéria-prima e a sua venda em mercado certo, sempre em alta. A qualquer sinal de crise, o que podia ser previsto com antecedência, por não terem capital imobilizado, sairiam da região com relativa rapidez. Os lucros eram investidos no exterior, ou em companhias de melhoramentos urbanos, garantidos pelo País.[2]

 

            As casas aviadoras eram estabelecimentos comerciais que despachavam mercadorias aos seringais mediante pagamento em pélas de borracha[3].  Eram financiadas pelas firmas exportadoras. Funcionavam, a princípio, exclusivamente, em Belém e depois passaram a se estabelecer em Manaus, quando o governo do Amazonas decretou o beneficiamento do látex nessa cidade. Benchimol denomina o período em que os donos de casas aviadoras estavam estabelecidos e prósperos em Manaus de “era dos Jotas” numa alusão ao fato de que a maioria desses aviadores chamavam-se Josés, Joaquins e Joões. O autor relata que era comum os aviadores receberem o título honorífico de comendador como forma de o governo português conferir prestígio àqueles conterrâneos que haviam conseguido enriquecer fora de sua terra. O título era concedido pelo governo português e também pelo Vaticano.

            Em alguns casos, a comenda que não havia sido concedida oficialmente tornava-se corruptela para o comerciante português rico.[4] De todo modo, o status dos aviadores tinha como base real os seus recursos financeiros que se mediam pelos bens que conseguiam amealhar, entre eles barcos para transportar as mercadorias para os seringais, indústrias de alimentos, fazendas de criação. A importância dos aviadores estava na dependência que os seringais lhes tinham. Sem os aviamentos, esses seringais não funcionavam. A relação entre os aviadores e os seringalistas era, em grande parte, de troca de produtos – produtos industrializados pelo produto da natureza – apesar de os seringalistas também receberem em dinheiro o saldo da transação. A relação de troca repetia-se entre os seringalistas e os seringueiros. Reproduzia-se, entre o aviador e o seringalista e entre o seringalista e o seringueiro, a majoração excessiva do valor dos produtos. Além da majoração dos preços em geral, o aviador também fornecia aos seringalistas produtos vindos dos mercados europeus, os quais, mais que encarecer os aviamentos, destoavam dos hábitos alimentares locais. Leandro Tocantins refere alguns dos alimentos em conserva que constituíam a alimentação nos seringais e que contribuíam para o enfraquecimento do organismo por falta de vitaminas e sais minerais:

 

[...] Ao esmiuçar-se as notas de fornecimento para os seringais, há uma revelação surpreendente, que é a numerosa lista de alimentos em conserva: carne de bife, carne-seca, salmão, sardinhas portuguesas, toucinho, chouriço, atum, ervilhas, doces enlatados, leite condensado, camarões em conserva, queijos da Holanda, manteiga francesa, bacalhau português[...][5]

 

            O historiador Arthur Reis cita uma extensa lista de produtos que eram despachados nos aviamentos, dos mais necessários ao trabalho de extração e para sobrevivência no meio da floresta, como as tijelinhas onde se aparava o látex e as armas para defesa, aos requisitados para outras necessidades, entre elas, o entretenimento, como é o caso do gramofone. Reis chama a atenção de que os custos dos aviamentos dependiam da importância dos seringais. Os que possuíam mais estradas e que, em virtude disso, produziam maior quantidade de látex, recebiam tratamento prioritário em relação aos seringais menores. Ressalta também que o custo dos aviamentos tornava-se mais caro para aqueles seringais que se localizavam em áreas de difícil acesso, como as dos altos rios ou dos rios encachoeirados. Reis também destaca que “[...] vezes e mais vezes o seringalista era devedor e não credor [...].”[6] Isso se dava porque o comércio da borracha era de risco e daí aviadores e seringalistas estarem sempre preocupados com a oscilação do preço do produto, especialmente com a queda excessiva do preço que poderia significar a ruína financeira, o que de fato ocorreu.   

 

Seringalistas ou coronéis da borracha

 

            Os seringalistas constituem precisamente o elo intermediário na pirâmide do ciclo extrativo da borracha. Ligam-se ao aviador, comprador do produto internamente, e ao produtor ou extrator, o seringueiro. A imagem clássica do seringalista é a do homem poderoso, de origem quase sempre nordestina, trajando terno de linho branco “HJ”, chapéu-chile, utilizando bengala e relógio de algibeira. Tornou-se também comum a imagem dos seringalistas como homens rudes e incultos, prestigiados apenas por seu poder  econômico. O historiador Arthur Reis destaca que havia seringalistas que fugiam a esse padrão, possuindo escolarização e boas maneiras, adquirindo comportamento requintado através das viagens que faziam, o qual se ostentava nos ricos palacetes que mandavam construir na cidade.[7] Pesa também sobre os seringalistas a fama de esbanjadores. Assim, tem-se a imagem de seringalistas que acendiam charutos cubanos com notas de quinhentos mil réis.[8] Os seringalistas tornavam-se senhores em seus domínios em função  do sistema de exploração a que estavam manietados.[9] O débito dos seringueiros lhes dava amplos poderes sobre eles, inclusive de caçá-los em fuga e recebê-los de volta com auxílio do poder público. Como forma de reforçar seu status, os seringalistas obtinham, por meio de relações políticas, a compra de patentes da Guarda Nacional. Desse modo, surgiram os “coronéis de barranco”. Semelhantemente ao que ocorria com os aviadores, em relação à comenda, a patente dos coronéis era atribuída por força do hábito de se considerá-los homens importantes, mesmo que não a tivessem recebido oficialmente. Atuando como potentados, os seringalistas exerciam força moral, política e mesmo policial em seus domínios, estabelecendo vínculos de compadres e afilhados, fazendo conchavos e acordos para apoiar candidatos às eleições municipais e estaduais, resolvendo brigas, combatendo as invasões de seringais vizinhos, justiçando criminosos e exercendo poder para prender e punir seringueiros que fugissem de seu seringal.

            O perfil social do seringalista, que imprimia obediência no seringueiro e o mantinha subalterno, estava sustentado em uma fraqueza econômica: o capital fictício. Os seringalistas não possuíam verdadeiramente capital, dependiam do financiamento de mercadorias das casas aviadoras. Sem essas mercadorias, não possuíam uma forma de manter o vínculo empregatício com o seringueiro, arruinando o seu empreendimento. Para obter lucro num negócio tão instável, lançavam mão da sobretaxa de preços nas mercadorias que repassavam aos seringueiros. O lucro que obtinham dessa sobretaxa era investido na compra de residências nas capitais Belém ou Manaus, em tratamentos de saúde, em viagens e em gastos supérfluos. 

            Mesmo não existindo um vínculo empregatício legal entre o seringalista e o seringueiro, o primeiro impunha ao segundo um regulamento, determinando os seus direitos e deveres. Deve-se ressaltar que a obediência ao regulamento também se estendia aos gerentes de depósitos, guarda-livros, encarregados de escrita, empregados de balcão, comboieiros, fiscais, empregados de campo, diaristas. Um regulamento de 1934, dos seringais de Octávio Reis, transcrito por Samuel Benchimol em seu livro Romanceiro da batalha da borracha, esclarece, na abertura, a necessidade de sua existência.

 

‘Toda a nação tem as suas leis para por ellas reger-se, e se, estas leis não são obedecidas por seus habitantes será uma nação em completa desorganização, onde não poderá haver garantias para os que nella vivem, nem para quem com ella mantiver negócios.

Sucede o mesmo com toda a sociedade que tem os seus estatutos para por elles regerem-se os seus sócios, e se não se obedece  a elles será uma sociedade desbaratada e sem duração. Até nas casas de famílias, para serem bem organizadas, teem que obedecer a uma ordem, sem a qual virá logo a desorganização, e dahi os resultantes desgostos de família, que infelizmente é o que mais acontece.

Como, pelo que vemos, tudo precisa de organização e ordem. Um Seringal, por exemplo, onde habitam centenas e centenas de almas, com diversos costumes, sexos diversos, e até nacionalidades diversas, não póde deixar de ter o seu regulamento, pelo qual todos os seus habitantes possam orientar-se de seus deveres de acordo com as posições e trabalho de cada um’.[10]

 

            O caráter mercantil do seringal é substituído em determinada passagem do regulamento pelo conceito de família. “[...] Precisamos notar que no seringal somos uma só família no cumprimento de nossos deveres, sem excepção de raça, crença religiosa, nacionalidade e posição [...].”[11] Nos deveres dos gerentes encarregados dos depósitos, o regulamento prescreve na linha “h” a exata importância do freguês ou seringueiro nas relações “familiares” do seringal: “[...] o freguez só é amigo e cumpridor dos seus deveres quando tem saldo.”[12]

 



[1] “As condições de acumulação e crescimento do capital na economia da borracha não foram potencializadas de modo a permitir um avanço da divisão social e técnica da produção. Esta, limitada pela concentração de interesses na monoprodução e pelo sistema de aviamento, apresentava-se num quadro insignificante e incapaz de transformar qualitativamente o padrão econômico [...]” (Eloína M. dos SANTOS, A rebelião de 1924 em Manaus, p. 31)

[2] Antônio J. S. LOUREIRO, Amazônia: 10.000 anos,  p. 172-3.

[3] Segundo Manoel J. de Miranda Neto, “[...] dá-se o aviamento quando ‘A’ (aviador) fornece a ‘B’ (aviado) certa quantidade de mercadorias (bens de consumo e alguns instrumentos de trabalho) ficando ‘B’ de resgatar a dívida com produtos agrícolas ou extrativos da próxima safra, em espécie; havendo saldo credor, ‘B’ recebe dinheiro; se o saldo é devedor, ‘B’ fica debitado até a safra seguinte. Mas ‘B’, uma vez aviado, pode tornar-se aviador de ‘C’, e assim por diante; o único aviado que não pode ser aviador é o produtor, isto é, o lavrador ou o extrator que trabalha na terra ou colhe os produtos da floresta e que é obrigado a vendê-los a um só comprador (monopsônio).” (O dilema da Amazônia,  p. 54).

[4] Samuel BENCHIMOL, Amazônia: formação social e cultural, p. 73-74.

[5] Leandro TOCANTINS, Amazônia: natureza, homem e tempo, p. 110.

[6] Arthur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 174.

[7] Ibid., p. 224.

[8] Samuel BENCHIMOL, Amazônia: formação social e cultural, p. 142.

[9] Enlaçados por um sistema em que se tornavam dependentes dos aviadores e esses, por sua vez, dos importadores-exportadores, cabia aos seringalistas relacionarem-se diretamente com o extrator do látex. Os seringalistas mantinham o seringueiro sob sua rígida dependência. Para alcançar sua posição, este precisaria passar por uma longa experiência nos seringais, em muitos casos atravessando gradativamente as posições de seringueiro, mateiro, comboieiro, pesador, classificador, capataz, auxiliar de escrita, gerente de balcão, arrendatário de estradas e colocações.

[10] Samuel BENCHIMOL, Romanceiro da batalha da borracha, p. 97.

[11] Ibid.,  p. 97.

[12] Ibid., p. 98.

FOTO DE ALBERTO CESAR