O AMANTE DAS AMAZONAS
Por: Lucilene Gomes Lima Em: 23/10/2013, às 05H09
A Floresta Amazônica, revista ficcionalmente pelo escritor nascido ali, em suas imediações, concentra a essência do mito de antigas eras, mas, aqui, insolitamente revestido pela roupagem do arcabouço mítico-lendário dos índios daquela localidade. A pureza mítica poderá ser classificada como a integridade vivencial do ser primitivo, aquele que não foi maculado por exigências ideológicas (sociais ou religiosas). O ser primitivo não conheceu (não conhece) o ônus do pecado cristão. Paxiúba não é cristão. É um ser original. Então, quem reconhece o “sorriso sensual e perverso, sublinhado por esboço de pecado” a fotografá-lo, é o narrador. A “ordem” mítica dos olhos de Paxiúba possui a pureza do primitivismo heróico. O bugre não sabe o que seja pecado, e não creio extratexto que Frei Lothar (um outro personagem importante) o tenha catequizado. Quem se percebe avaliando o “sorriso sensual e perverso” de Paxiúba é o narrador. Quem avalia o olhar do “pecado” o fotografando é o narrador, aquele que, historicamente, conhece os dogmas do cristianismo, no que tange a relacionamentos sexuais. As “baixezas” do olhar de Paxiúba saíram do “espelho” simbólico-ficcional duplicado e “sublimado” de quem narra, não da pureza primitiva do mito.
Paxiúba “se efetivara guerreiro de épocas irregulares, de tempo inverso” (invertido), possuidor dos “remotíssimos mecanismos ardilosos, das possibilidades do corpo”, ou seja, “remotíssimos mecanismos ardilosos” da urgência sexual. O guerreiro de épocas contrárias às regras (de civilidade), nesta dimensão da narrativa ficcional rogeliana, é a personificação do ser mitológico. Este ser em especial (o Paxiúba) conhece as normas e os preconceitos sexuais do ser civilizado, por isto é “capaz de muito realizar sexualmente, pois sabe sedimentar (endurecer), a partir de seu apetite carnal fabuloso, “o músculo vivo e assumido”. Seu poder é o da força bruta. Se há algo que deseja, ele o toma. Por isto, “era bom de não se encontrar de repente, na estrada deserta”. Por isto, a exigência da cautela, da precaução. Por isto Zilda, a esposa do Laurie Costa, “uma certa e acocorada lavadeira das roupas (roupas do Palácio), agachada sobre a prancha lisa do tabuão de sabão” , se assusta com o “regular da urgência daquele olhar” .
“Paxiúba, emblema da Amazônia amontoada e brutal, sombria, desconhecida, nociva”. Por que o narrador visualiza “Paxiúba (como) emblema da Amazônia amontoada e brutal, sombria, desconhecida, nociva”? Paxiúba é o símbolo do guerreiro mítico, gerado por seres excepcionais: a índia caxinauá e o negro barbadiano. O pai de Paxiúba, para o projeto mítico-ficcional em questão, teria de ter uma ascendência diferenciada, notável. Paxiúba teria de ser oriundo da fusão do lendário indígena com o fantástico do imaginário africano. Há poucos negros no Estado do Amazonas. O “pai” teria de se constituir diferente dos outros pais das miscigenações usuais da realidade dos costumes amazonenses. O caboclo, originário da mistura entre o índio e o branco, não possui o porte, o vigor deste personagem. Paxiúba é o “emblema”, o símbolo dos poucos “bugres”, representantes da raça forte que por ali transita. Para a “Amazônia amontoada e brutal, sombria, desconhecida, nociva”, o autor reserva os símbolos depreciativos. “Amazônia amontoada”: todos os estratos sociais (brasileiros e universais) que para ali vão, em busca de riqueza fácil. “Amazônia brutal”: espaço geográfico onde se digladiam, em prol do rendimento pecuniário, seres grosseiros e violentos, já maculados pelas regras insanas do capitalismo selvagem. “Amazônia sombria”: receptáculo de seres tristes, lúgubres, despóticos, capazes de quaisquer ações de conseqüências desagradáveis para alcançarem seus intentos progressistas. “Amazônia desconhecida”: espaço geográfico ignorado politicamente (pelo menos, durante a ocasião do desenvolvimento do projeto ficcional), “terra de ninguém” onde se faz presente a lei do preferencialmente forte, social e miticamente apresentada. “Amazônia nociva”: Amazônia em que todos estes danos, apresentados pelo narrador, ameaçam destruir a hegemonia da nação brasileira. Paxiúba é o “emblema” (símbolo) porque, por intermédio de sua face sócio-substancial, duplicada pela ficção, o narrador o coloca como “pistoleiro do rei”, o capanga profissional, o assecla do poderoso dono do Manixi. E, para ser o “emblema” do Amazonas e sustentar a honraria, o candidato ao cargo e ao título teria (terá) de ostentar (mesmo que não fosse / que não seja imortal) a poderosa face do mito.
“Paxiúba, pistoleiro do rei”. A partir desta assertiva, inicia-se a transformação dimensional do personagem. O semi-humano Paxiúba foi apresentado aos leitores, anteriormente, à moda dos lendários heróis mitificados, mas, como assecla do poderoso dono do Manixi, vigorará, daqui para frente, como personagem da dimensão sócio-substancial. A proposta ficcional do escritor amazonense não lhe concedeu o direito de gloriosamente retornar à (retomar a) dimensão mítica, uma vez que Paxiúba não é herói de narrativa épica. Mesmo assim, até aqui, os adjetivos abonadores caracterizam o herói lendário, e os adjetivos que não combinam com a aura do mito saem da perspectiva diferenciada do escritor da segunda fase do pós-modernismo brasileiro de Segunda Geração. Neste interregno mítico-ficcional, Paxiúba caracteriza o “soldado”, o assecla, o jagunço, o matador profissional, o lugar-tenente dos antigos e poderosos donos-de-terra do Brasil, regidos há bem pouco tempo por normas políticas imperiais.