NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

 

SOBRE O ROMANCE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL

 

NEUZA MACHADO: Pierre Bataillon: O Representante do Capitalismo Primitivo do Império Amazônico em Oposição aos Limites Ilimitados do Manixi

 

Lembro-me de que, naquele Igarapé do Inferno, mas logo mais abaixo na última linha que riscava o horizonte daquela tarde ─ (...) ─ como num recorte de uma cena de um escrupuloso sonho histórico, soberanamente saltou sobre meus olhos o vulto belo e art-nouveau do Palácio Manixi ─ (...) ─ , sede do Seringal e residência de Pierre Bataillon, pois nós retornávamos em busca daquele passado interdito, pois nós chegávamos no fim daquela era, quando o Palácio transparecia com deslumbramento nos seus múltiplos reflexos das quinquilharias de cristal, janelas e bandeiras das portas transformadas em lúcidas placas de ouro reluzente e vívido e muito louco.[i]

 

“Pois nós retornávamos em busca daquele passado interdito, pois nós chegávamos no fim daquela era, quando o Palácio transparecia com deslumbramento nos seus múltiplos reflexos das quinquilharias de cristal, janelas e bandeiras das portas transformadas em lúcidas placas de ouro reluzente e vívido e muito louco”, afirma(m) o(s) narrador(es) rogeliano(s). O primeiro narrador, Ribamar de Sousa (reduplicado por uma pluralização pessoal) chega ao Palácio Manixi quando este já começava a apresentar-se em seu processo de decadência. Para revelá-lo reflexivamente aos leitores de Rogel Samuel, buscarei reforço analítico-interpretativo na Poética da Casa de Gaston Bachelard e em outras interferências filosóficas (citações), valiosas, retiradas dos diversos livros de sua fase noturna. O Palácio, a Floresta, a Cidade de Manaus, todos os planos desta obra diferenciada de Rogel Samuel se distinguem a partir de um único princípio, ou seja, refletem a “casa inesquecível” de que nos fala Bachelard, com seus recantos secretos aninhados no mais profundo dos pensamentos. Por isto, o “Igarapé do Inferno” (por que Igarapé do Inferno?) se revela a sinalizar íntimas lembranças infernais, lembranças que obrigam o primeiro narrador a revelá-las. Quem está buscando o “passado interdito” é o escritor Rogel Samuel, porque foi ele, enquanto singularidade ativa de seu núcleo social primitivo, que chegou ali, pelo nascimento, já no final de uma era de glórias capitalistas, no início da decadência do esplendor da borracha.

O Palácio Manixi como reflexo das ruínas da casa natal inesquecível. O Palácio como reverberação das perdas existenciais de um homem que poderia ter nascido, crescido e permanecido na opulência, por ser herdeiro de nomes notáveis (perdidos, por interferência de durações mal administradas), mas que se viu na contingência de sair pelo mundo (assim como o Ribamar de sua história), “a criar [suas] próprias pélas”[ii]. O escritor, oriundo de famílias destacadas daquele passado de glórias, poderia ter sido, naquelas paragens de nascimento, um Zequinha Bataillon bem edificado. A crise da borracha decidiu o contrário. Seu avô Maurice Samuel, rico judeu-francês, figura de destaque na cidade de Manaus do princípio do século XX, perdeu toda a sua fortuna, quando da recessão econômica da borracha, ficando na bancarrota. Foi, talvez, a partir da imagem do avô Maurice (possivelmente, sempre destacada com reverência e respeito pelos familiares), metaforicamente assimilada (somatório) às antigas figuras dos chefes políticos manauaras, que houve surgir a representação/ recriação do poderoso personagem Pierre Bataillon.

Recuperando as informações bachelardianas, contidas no capítulo “A dialética do energismo imaginário[iii], do livro A Terra e os Devaneios da Vontade, e se as comparo com as informações contidas no texto ficcional de Rogel Samuel, a delineação de grande efeito, poderosa, do personagem Pierre Bataillon, se tornará mais transparente.

 

A vontade de poder inspirada pela dominação social não é nosso problema. Quem quiser estudar a vontade de poder é fatalmente obrigado a examinar primeiro os signos da majestade. Ao fazer isso, o filósofo da vontade de poder entrega-se ao hipnotismo das aparências; é seduzido pela paranóia das utopias sociais. A vontade de trabalho que queremos estudar (...) nos desembaraça imediatamente dos ouropéis da majestade, ultrapassa necessariamente o campo dos signos e das aparências, o campo das formas.

 

A vontade de trabalho não pode ser delegada, não pode usufruir o trabalho dos outros. Prefere fazer a mandar fazer. Então o trabalho cria as imagens de suas forças, anima o trabalhador por meio das imagens materiais. O trabalho põe o trabalhador no centro do universo e não mais no centro de uma sociedade. E se o trabalhador precisa, para ser vigoroso, das imagens excessivas, é da paranóia do demiurgo que vai tirá-las. O demiurgo do vulcanismo e o demiurgo do netunismo ─ a terra flamejante ou a terra molhada ─ oferecem seus excessos contrários à imaginação que trabalha o duro e àquela que trabalha o mole. O ferreiro e o oleiro comandam dois mundos diferentes. Pela própria matéria de seu trabalho, na proeza de suas forças, eles têm visões de universo, as visões contemporâneas de uma Criação. O trabalho é ─ no próprio fundo das substâncias ─ uma Gênese. Recria imaginativamente, mediante as imagens materiais que o animam, a própria matéria que se opõe a seus esforços.[iv]

 

Bachelard diz: “A vontade de poder inspirada pela dominação social não é nosso problema”, quer dizer, não é problema do filósofo (não é problema dele, do Gaston Bachelard). E continua: “Quem quiser estudar a vontade de poder é fatalmente obrigado a examinar primeiro os signos da majestade”, e isto é um problema do ficcionista-criador, e neste caso específico, do ficcionista manauara Rogel Samuel. Quem terá de se deixar seduzir momentaneamente pelo instante metafísico pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, pelo “hipnotismo das aparências”, dos simulacros cotidianos que imperam em seu momento histórico, e quem terá de se embaraçar nos “ouropéis da majestade” de um personagem ímpar, poderoso, é o “demiurgo do vulcanismo”, conectado indissoluvelmente e indistintamente ao “demiurgo do netunismo” ─ o demiurgo da terra flamejante acoplado ao demiurgo da terra molhada ─ [oferecendo] “seus excessos contrários à imaginação que trabalha o duro e àquela que trabalha o mole”. “A vontade de trabalho não pode ser delegada, não pode usufruir o trabalho dos outros”, explica Bachelard. Então, a “vontade de trabalho” ficcional de Rogel Samuel, extremamente diferenciada, ao revelar a grandeza e declínio da Era da Borracha, no Amazonas, não poderá ser avaliada como subproduto de suas inúmeras leituras (históricas ou não) sobre o assunto. Sua “vontade de trabalho”, ao intuir a sua ficção singular, ultrapassou os limites do explicitamente oferecido. Sua “vontade de trabalho” criou “as imagens de suas forças” narrativas, forças que o animaram “por meio das imagens materiais”, ficcionistas, de um Manixi esplendoroso e de um Pierre Bataillon repleto de um supremo poder (o poder capitalista selvagem que grassou no Amazonas, a partir do século XIX até meados do século passado ─ século XX ─, e que se enfraqueceu, posteriormente, retirando do lugar o esplendor de outrora).

“O trabalho põe o trabalhador no centro do universo e não mais no centro de uma sociedade. E se o trabalhador precisa, para ser vigoroso, das imagens excessivas, é da paranóia do demiurgo que vai tirá-las”. Paranóia do demiurgo: o “trabalhador” ficcional Rogel Samuel necessitou do seu primeiro narrador Ribamar de Sousa (o demiurgo à moda dos ficcionistas do período de transição do pós-moderno/modernismo de Terceira Geração para o pós-moderno/pós-modernismo de Primeira Geração) para  recuperar a paranóia (delírio de grandeza) de uma pequena sociedade provinciana (sua sociedade de origem), sociedade que já perdeu há muito a ostentação do passado, mas que insiste ainda em cultuá-la, apesar da pobreza e do abandono, dos desníveis sociais visíveis nas populações ribeirinhas.






[i] Ibidem.


[ii] Idem, 2005: 14.


[iii] BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios da Vontade. 1. ed. Tradução: Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1991.



[iv] Idem: 25 - 26.