NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

 
 
 
No máximo, se me predisponho a avaliá-lo somente pelo ponto de vista das regras estruturais da ficção (analise cientificista), uma vez que o próprio autor concedeu-me esta incursão teórico-crítica, ao revelá-lo como “espetáculo bom de ver, mas literário”, ou seja, índio-bugre “enorme tetrápode”, aventuro-me a dizer que o caboclo Paxiúba se presentificou, na ficção rogeliana, por meio da narração simbólica, passada de geração a geração, como demonstrativo do valor das origens do homem amazonense. Assim, aqui, por intermédio da palavra do escritor, nomeando-o como “literário”, apresenta-se uma diferenciada força da matéria mítico-ficcional. Todos os adjetivos qualificativos, utilizados pelo ficcionista, impelem o leitor a concebê-lo como um ser extraordinário. E o extraordinário jamais significará a realidade vital sedimentada no racionalismo cientificista. A perfeição mítica, dos primeiros segmentos narrativos, o coloca em uma posição privilegiada: Paxiúba, o “poderosamente selvagem”, possui uma “musculatura nobre de dar inveja às secularmente conceituadas estátuas do Louvre, pois possui a cabeça erguida sobre o pescoço grosso, sólido, de muito, e guerreira, assassina, arisca subjetividade”. E quem confirma a grandeza de Paxiúba, sabe o por quê de tal afirmação. As estátuas do Museu do Louvre foram, muitas vezes, analisadas, ou mesmo interpretadas pelo escritor, um homem que nunca se recusou às aventuras das viagens internacionais, um conhecedor inconteste das reverenciadas obras dos grandes artistas de todos os tempos, obras estas destacadas nas famosas paredes e galerias do Museu francês.
 
─ sim, que quem se introduz nesta estória e então fala é o enorme bugre caboclo Paxiúba, naquela época com cerca de dezenove anos, mas já bem dotado de grande, de fama, de alto, de um metro e noventa e dois de altura, ah, bem me lembro inteiro dele sim, a gente fica velho mas, antes de morrer, a memória a gente aviva, e nela vive, até o tampo do tempo nos apagar, gatão lustroso que passa sua língua, nada, no parado esquecido, tal que logo desaparecemos que vai ser como se nunca tivéssemos existido, nem mesmo como personagem de ficção que é o que é.[i]
 
─ ele-mesmo se aproximando assim, remando silencioso e feroz pela face da manhã, no luxo de frente do porto do Laurie Costa, que ficava na margem esquerda do igarapé do Inferno, submerso e distribuído pelo prestigioso vale.[ii]
 
“A água doce é a verdadeira água mítica”[iii], assim falou Gaston Bachelard. Paxiúba “se introduz na história e então fala” porque, para criar o espaço tridimensional do Manixi ─ sócio-mítico-ficcional ─, patrocinado pelo elemento água (garantindo-lhe perenidade), e para, posteriormente, lançá-lo no imaginário-em-aberto do leitor reflexivo, o escritor pós-modernista de Segunda Geração percebeu a necessidade de uma outra renovada e poderosa chave, para abrir-lhe a porta da dimensão mítica, sobrenatural, de uma terra desconhecida. Na primeira etapa da narrativa rogeliana, a chave resguardada pelos “parentes” possibilitou ao narrador Ribamar de Sousa a interação com os aspectos históricos visíveis daquela realidade diferenciada. O tio Genaro e o irmão Antônio, possuidores da primeira chave, conheciam somente as duas margens conceituais do Igarapé do Inferno e umas poucas trilhas terrestres do Manixi. Não eram natos do lugar e, portanto, não poderiam propiciar ao narrador um incomum reconhecimento das peculiaridades mítico-ficcionais, ainda não nomeadas, daquele fabuloso espaço sócio-substancial. Por conseguinte, urgia encontrar uma solução que o levasse a interagir com as aquáticas sinuosidades desconhecidas da narrativa, ou seja, intuir uma novíssima chave transcendental. E eis que Paxiúba se introduz na história, diferenciado dos “parentes” do narrador, revelando o poder de fala dos antigos narradores de tempos heróicos.
“A voz como era?”, indaga o primeiro narrador, maravilhado com a sua nova direção ficcional. Paxiúba, o bruto, possui o poder da voz que representa o herói mítico. Assim, como uma divindade semi-humana, possui voz tonitruante. Somente os heróis mitificados possuem voz poderosa. Este “herói” é o possuidor da chave simbólica que fará o primeiro narrador, agora também mitificado, a percorrer com o próprio olhar diferenciado, a mão dinamizada e o imaginário fantasticamente iluminado, os limites mágicos do Manixi. “Ah, bem me lembro inteiro dele sim, a gente fica velho, mas, antes de morrer, a memória a gente aviva, e nela vive, até o tampo do tempo nos apagar”, revela o primeiro narrador. As lembranças fazem parte da memória, e na memória se concentra o poder mítico. A memória mítica só resguarda tempos heróicos e seres extra-reais, mesmo assim, não se pode duvidar de sua verdade. A verdade mítica será sempre renovada, revestida por novas roupagens. Neste intervalo narrativo-ficcional, o narrador de Rogel Samuel terá de passar pela iniciação do conhecimento primordial e sobrenatural. Páginas adiante, o segundo e verdadeiro narrador entrará ficcionalmente e vitoriosamente no “quarto escuro” do repouso fervilhante, para de lá sair renovado. Neste segundo momento ficcional, Paxiúba é o representante da chave mítica (chave mágica). A terceira chave, transcendental (oriunda do plano da consciência dinamizada), aquela que vigorou/vigora no imaginário-em-aberto do escritor Pós-Moderno/Pós-Modernista de Segunda Geração, desde o início da narrativa, só será percebida e interpretada pelos leitores-eleitos “incomodados” quando o segundo narrador se predispuser a aparecer no fluxo interativo do recontar renovado.


[i] Idem: 37.
[ii] Ibidem.
[iii] BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. 1. ed. de 1989. São Paulo: Martins Fontes, 1998: 158.