NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

 

 

Tio Genaro e Antônio são importantes e ativos, pois possuem a “chave” da interação entre a Dimensão Mítica e a Dimensão Social (juízos negativos e juízos positivos). Os juízos de descoberta virão por acréscimo, amparados pelo dilatado imaginário-em-aberto do criador ficcional. Eles não falam porque, temporariamente, estão vigorando na dimensão sobrenatural da obra de Rogel Samuel. Eles não falam porque representam a superfície insólita do imaginário dilatado e silencioso do escritor pós-modernista de Segunda Geração. Não falam porque, nessa dimensão incomum da obra rogeliana, as palavras serão formalizadas gradativamente. Não falam, mas serão os indutores de incríveis acontecimentos, necessários guardiões do limite entre a realidade conceitual e a supra-realidade, também conceitual. Eles deixam o narrador “sentado no escuro, chorando no abandono e solidão, porque ele terá de encontrar, sozinho, por conta própria, singularmente, o rumo do que deseja escrever, mesmo que infrinja as Leis do “Bem Narrar” à moda tradicional. Para “Bem Ver e Escrever” a realidade do século XX, o narrador pós-modernista de Segunda Geração terá de passar pela iniciação do quarto escuro, o que Bachelard nomeia como “repouso ativado” (Dialética da Duração). O narrador, alter ego do escritor, ao se defrontar com os “parentes”, intui a grandeza da empreitada na qual se lançara. Ali, diante do tio Genaro e do irmão Antônio, se percebe “chorando no abandono e solidão”. Ali, “sentado no escuro”, ele sente a água da chuva (forças imaginantes da água, pelo ponto de vista bachelardiano) a escorrer na “mala de amarrado”. E ele “não quis ter vindo, mas não tinha o caminho de volta”. E nunca mais voltou.

 

O repouso fervilhante do pensamento (repouso ativado, pela ótica de Gaston Bachelard) traduz-se, em princípio, por um esvaziamento da mente em relação aos conceitos usuais, uma reflexão que induz a uma breve imobilidade mental, na qual se acrisolam pensamentos díspares, os quais serão reordenados inversamente em seguida e direcionados para novas e surpreendentes descobertas mentais.[i]

 

A partir deste comunicado do ficcionista (“sentado no escuro”), procuro ajuizar a intenção do autor literário ─ criativo ─ do final do século XX, submetido a seus pensamentos díspares, no “escuro” de sua mente esvaziada de conceitos usuais, percebendo sonhadoramente a água da chuva a escorrer na “mala de amarrado” de seu personagem-narrador, ou melhor, a escorrer de seu “repouso fervilhante” (BACHELARD), mas, logo a seguir, se deparando com o inesperado de sua intuição ficcional, uma vez que as águas das chuvas amazonenses e os desacertos existenciais do globalizante cotidiano do final do segundo milênio sempre fizeram parte de sua vida. Naquele instante dinamizado, não é o imprevisto da comum novidade e da variedade de impressões pitorescas que o impulsionaram a escrever o seu diferenciado romance sobre o Amazonas, mas sim as causas já problematizadas, eternais, que se acrisolavam em seu íntimo mobilizado.

Deste modo, olhando a narrativa pelo ângulo do escritor, os personagens tio Genaro e Antônio não falam porque representam o momento de crise da vida amazonense. Representam também a crise da linguagem ficcional. A crise que invadiu e deteriorou todas as dimensões sócio-temporais do ser humano, exigindo-lhe novas veredas nos planos verticais do pensamento. Eis aqui o momento ficcional de Rogel Samuel a exigir-lhe o silêncio e a recomposição. Eis o indivíduo que não aceita escrever por escrever: “Não. Não escreverás um / só texto / mas o que for dito / e luminoso”[ii]. O momento histórico deste escritor amazonense exige-lhe a insólita busca de um “lugar sempre em princípios”, mesmo que esse lugar seja “a pátria das más notícias”[iii]. Tio Genaro e José foram os pioneiros (no princípio da narrativa foram os representantes dos narradores tradicionais, lineares), mas não foram convidados, ao longo do desenrolar ficcional rogeliano, a se expressarem à moda tradicional. Receberam o “parente”, mas não o reconheceram como tal. Não o compreenderam porque o “parente”, alter ego do escritor verticalizante, já interagia (interage) com os estranhos cogitos do tempo do pensamento, distanciado que estava (está) das limitações impostas pelo tempo vital (o tempo do relógio contando os segundos, os minutos, as horas, os dias e noites, os meses, os anos, os séculos, etc.).

Por este prisma fenomenológico, quem se percebe chorando, “no abandono e solidão”, é o criador ficcional da pós-modernidade, o escritor da narrativa O Amante das Amazonas. Foram dez anos de pesquisa para a elaboração de seu projeto literário. A caminhada foi longa. Ele teve de revolver o passado familiar, buscar as próprias origens nordestinas, peruanas, judaicas e francesas (como herdeiro de sobrenomes ─ nomes familiares ─ notáveis), leu os grandes clássicos, escritores famosos, lecionou em um respeitável curso universitário e produziu literatura técnica de qualidade. Desenvolveu inúmeros talentos além da escrita literária, como pintura e música, reconheceu a validade da computação e aceitou a novidade da Internet pós-moderna como veículo indispensável para a projeção intelectual. A trajetória (de Manaus para o Mundo) não foi um caminho suave. Muitos obstáculos surgiram. E, em sua narrativa extremamente elevada, o seu narrador-alter ego se defronta com “parentes” que não o reconhecem mais como tal, porque esses já não são mais de sua espécie, “tinham virado bichos”, e não lhe poderiam ensinar mais nada[iv]. A “mala de amarrado”, no início da narrativa ─ mostrando-se repleta de suas próprias idéias originais, idéias que se entrelaçam, se ajustam, se repelem (repouso fervilhante), em meio a “duas mudas de roupa”[v] ─ “escorrendo chuva”, teria de ser aberta de qualquer maneira. Seu primeiro narrador Ribamar de Sousa iniciara a viagem em seu lugar, “a família toda” (seus familiares, seus conterrâneos, seus pares intelectuais amazonenses ou não) o deixara sozinho “no horror de Deus”, retomar as regras ficcionais do passado, regras passadistas, naquele início narrativo, seria algo impossível. A “mala de amarrado” teria de ser aberta e re-arrumada várias vezes, por meio de novas e diferentes diretrizes ficcionais.

 

Pois do lado de cá ficava como um sapo em sua poça, condenado ao que seria a família constituída, dois machos protagonistas do enigma do meu silêncio e angustiosa comunicação gestual, parentes quase mudos bichos, que salvavam a vida no deserto por resmungos monossilábicos, viventes sem mulheres e amizades, existindo na prisão geográfica onde só recordar era possível sob a pressão da materialidade selvagem e da solidariedade de guerra.[vi]

 



[i] MACHADO, Neuza. Do pensamento contínuo à transcendência vital: Sobre a obra ficcional de Guimarães Rosa.

[ii] SAMUEL, Rogel. 120 Poemas. Rio de Janeiro: Legor, 199...: p

[iii] Idem, 2005: 13.

[iv] Idem: 9.

[v] Ibidem.

[vi] Idem: 30.