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SOBRE O ROMANCE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL

Pierre Bataillon: O Representante do Capitalismo Primitivo do Império Amazônico em Oposição aos Limites Ilimitados do Manixi

 

 

 

Entretanto, colocando a questão do poder do capitalismo selvagem e de seu chefe supremo, em O Amante das Amazonas, percebo a majestade de Pierre Bataillon como oriunda da forma de governo familiar que prevaleceu aqui no Brasil no final do século XVIII e em todo o século XIX. O capitalismo de então ensaiava por aqui seus primeiros passos para a implantação dos grandes latifúndios, os quais se espalharam, à moda de ilhas sociais, em cada cantinho da Nação Brasileira. A supremacia do dinheiro era um privilégio de poucos e, assim, entre esses poucos surgiram os poderosos troncos familiares.

 

Até o advento da problemática da população, a arte de governar só podia ser pensada a partir do modelo da família, a partir da economia entendida como gestão da família. A partir do momento em que, ao contrário, a população aparece como absolutamente irredutível à família, esta passa para um plano secundário em relação à população, e portanto não mais como modelo, mas como segmento. E segmento privilegiado, na medida em que, quando se quiser obter alguma coisa da população ─ quanto aos comportamentos sexuais, à demografia, ao consumo, etc. ─ é pela família que se deverá passar. De modelo, a família vai tornar-se instrumento, e instrumento privilegiado, para o governo da população e não modelo quimérico para o bom governo. Este deslocamento da família do nível de modelo para o nível de instrumentalização me parece absolutamente fundamental, e é a partir do século XVIII que a família aparece nesta dimensão instrumental em relação à população, como demonstram as campanhas contra a mortalidade, as campanhas relativas ao casamento, as campanhas de vacinação, etc. Portanto, aquilo que permite à população desbloquear a arte de governar é o fato dela eliminar o modelo de família.[i]

 

Mas, repensando a questão pelo prisma foucaultiano, “a problemática da população” e “a arte de governar”, naquelas paragens amazonenses próximas às fronteiras da Bolívia e Peru, nos séculos XVIII e XIX, não se originaram do governo familiar de modelo colonial português, ao contrário, o modelo familiar amazonense, principalmente o da capital do Estado, até aos dias de hoje, reflete o modelo familiar francês e uma certa influência alemã, herdada naturalmente, do convívio da população citadina e ribeirinha com os padres alemães e prussianos, das congregações católicas que por ali se aclimataram. Influências marcantes, também, poderão ser diagnosticadas, levando-se em consideração as grandes expedições de estudiosos franceses e germânicos da fauna e flora da região amazonense e adjacências, e do domínio centralizador e familiar de muitos desses estrangeiros que se colocavam como donos (e se colocam ainda) de extensões e extensões da Grande Floresta, desmatando-a implacavelmente, além de subjugar a população nativa e os retirantes nordestinos, que para ali se deslocaram, nas épocas das grandes secas, em busca de melhores meios de vida. O próprio romance de Rogel Samuel oferece-me pistas reveladoras:

 

Eles [o tio Genaro e o irmão Antônio] freqüentaram o Rio Eiru, numa volta quase em sacado, e dali partiram em chata, barco e igaraté até o Rio Gregório, onde trabalharam para os franceses, (...)[ii]

 

Lembro-me de que, naquele Igarapé do Inferno, mas logo mais abaixo na última linha que riscava o horizonte daquela tarde (...) como num recorte de uma cena de um escrupuloso sonho histórico, soberanamente saltou sobre meus olhos o vulto belo e art-nouveau do Palácio Manixi (...), sede do Seringal e residência de Pierre Bataillon, (...)[iii]

 

Sim, porque tudo a fortíssima codificação daquilo tem a ver com a experiência do retorno, da construção, que aquilo era uma edificação (...) de dois andares mais porão de procedimento art-nouveau, cingida de finos gradis de ferro torneado, em convulsionadas e violentas volutas de gavinhas de elegante e efeminado contorno, travestidas, descomedidas, decorando a escadaria de mármore torto e enfático, escura e em pleno gozo das réplicas vilas européias.[iv]

 

Eu não sou. Sou de outra época. Sou do tempo de um capitalismo primitivo, arcaico, luxuoso, feito tricotado em ouro e pedras preciosas, de um outro modo, daquele tempo em que o Palácio era a imagem em busca de sua natureza profunda. Ali se dispunha de uma sala de música onde se ouvia principalmente Beethoven, de um piano Pleyel, a vitrine onde Pierre Bataillon ostentava sua coleção de violinos (o Guarnerius, o Bergonzi, o Klotz, o Vuillaume), as gravuras representando Viotti, Baillot, David, Kreuzer, Vieuxtemps, Joachim; a máscara mortuária de Beethoven, laureado em bronze, de Stiasny. A Biblioteca, em que alguém uma noite leu em voz alta versos de Lamartine.[v]

 

E salas e salas se interrogando para quê, salões e galerias e cômodos se intercomunicando por portas sucessivas que se abriam em galerias e corredores restritos, que se fechavam em si mesmos, ao som do piano de Pierre Bataillon dialogando com o violino de Frei Lothar uma sonata Mozart, como alguém que se concentra em si mesmo, de um poder mortal, ágil e terrível que se expressava nas paredes de estuque pintado, por irisações de um ouro esverdeado e escuro, na entrançadura de seus ritmos de galhadas e folhagens, de uma vegetação alucinada e japonesa que subia por aquelas formas pelo teto multirefletido nos bisotados espelhos de cristal, e nas flores dos lustres de modo a evocar a lembrança de exótico prazer. Sim, sou um velho de um outro século, e ali vivi, observando, aprendendo e comendo durante o longo daqueles anos todos, no círculo e em torno daquela povoação de objetos e móveis antigos, que descreviam monstros consumidores: como na cômoda veneziana a visão da atividade sexualizada da imagem; no armário de Boulle cenas de caça com javalis do consumo e cães mastigando sangrentas aves abatidas a tiros pelo Duque de Chartres e outros cavaleiros fidalgos na idiotia de vistosas calças vermelhas e botas pretas; no silêncio rigoroso do gabinete inglês, na dinâmica, na morfologia prostituta do divã de Delanois; na unidade e variante elíptica do canapé ─ e nos cipós, íris, cardos, insetos estilizados, poliformes, incorporando-se aos móveis e às linhas dos painéis franceses num delírio neo-rococó como não quis a natureza: estátuas sobre lambrequins, rocalhas e rosáceas ecléticas, urnas nas cimalhas dos balcões simbolizando a energia, a ontologia e o desejo do capitalismo de tudo consumir, de tudo gastar, de tudo produzir, de tudo poupar e de tudo faltar e apropriar-se, tranbordando e abortando na loucura, na miséria e na morte[vi]

 

(...) o pequenino Pierre Bataillon comeu e consumiu e fez em detritos toda a sua imensa fortuna na degustação de suas mobílias suntuosas e amontoadas e sem uso, no processo de esquizofrenia desejante e reprodutora, no fluxo de sucção de sua fina boca desumanizada, para por fim ao exagerado dos seus lucros surpreendentes, no autofágico prazer do mínimo consumo diário de seu capital miraculoso, sangrento e luxuriante, ao transplantar ali a qualquer custo todo o espírito do humanismo europeu que se deslocava em navios fretados, trazidos, no embaraço dos seus belos e artísticos objetos inúteis, de uma arte vã, fútil e suicida porque improdutiva, insaciável e escrota.[vii]



[i] Idem, 1990:  288 - 289.

[ii] SAMUEL, Rogel, 2005: 12.

[iii] Idem: 16.

[iv] Idem: 17-18.

[v] Idem: 19.

[vi] Idem: 19 - 20.

[vii] Idem: 20 - 21.