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II – um sertão inesquecível

 

II.1 - Sertão: Casa da Infância

 

A poética da casa de Gaston Bachelard (cf. A ÁGUA E OS SONHOS) possibilita ao teórico da literatura, possuidor de um razoável conhecimento de como se interpretar um texto literário pelos princípios da fenomenologia, uma incursão/excursão ao Sertão Ficcional de Guimarães de Rosa. Suas primeiras narrativas, escritas sob o impacto da descoberta de um mundo sertanejo incomum, apresentam a parte externa, pitoresca, de um espaço geográfico, memorável, resgatado das impressões da infância. Entretanto, o sertão mineiro, como representação legítima da casa inesquecível do escritor, só começa a ser recuperado criativamente a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, revelando seus recantos secretos, seus refúgios, seus abrigos. O narrador, nesta narrativa, já evidenciando uma mudança de perspectiva (saíndo da perspectiva horizontal para a perspectiva interativa, questionadora), recordando o sertão, auxiliado pela contribuição da matéria lírica, recorda a casa da infância daquele que o concebeu ficcionalmente, e é por isso que o escritor sertanejo, num determinado trecho, liberta-se do jugo do narrador experiente, para recordar a antiga morada. É seu passado inesquecível que se sobressai, quando se descontrola discursivamente, em sua narração dos acontecimentos que pautam a volta de Nhô Augusto ao Arraial do Murici. A volta do personagem representa o retorno das recordações de uma infância privilegiada. Por esta razão, observa-se o tom poético, o discurso estranho, diferente, o qual se verifica a partir da decisão de Nhô Augusto de regressar a seu arraial de origem. O ficcionista, sob a influência da consciência fervilhante, obriga o seu narrador do momento a partilhar de suas próprias emoções, nomeando os pormenores da caminhada e interagindo com os sentimentos inerentes a seu personagem ficcional.

 

O narrador informa que Nhô Augusto não percebia os rumos que tomava. Ouso afirmar, desvinculando-me (com inovadora consciência interativa) da constantemente modificada orientação analítico-estruturalista: o Artista literário do século XX não percebia os rumos que a narrativa tomava. Bachelard orienta-me: a casa — o sertão — faz o ficcionista devanear, faz seu narrador poetizar. Sertão inesquecível. Narrador já agora pós-moderno, que não consegue esquecer o castelo intrigante e misterioso de seu heróico passado sertanejo, o qual permanece vívido em suas recordações. Valores verdadeiros de uma antiga realidade imaginosa. Não são os valores objetivos que contam. Contam mais os momentos marcantes da infância e adolescência vividos naquele lugar, os quais permaneceram indeléveis no íntimo do Artista. Narrador-Poeta ou Poeta-Narrador, ou simplesmente Poeta? Os poetas não delegam poderes, apenas sentem, recordam, devaneam, não transitam entre dois mundos diferentes, se encontram além da objetividade histórica. Por tais motivos, centralizei minha investigação sobre a poética da casa, ao interagir interpretativamente com a narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, nos trechos que reproduzem a interferência da matéria lírica na criação poético-ficcional do narrador.

 

Bachelard cita Jung em sua Introdução:

 

Temos que descobrir uma construção e explicá-la: seu andar superior foi construído no século XIX, o térreo data do século XVI e o exame mais minucioso da construção mostra que ela foi feita sobre uma torre do século II. No porão descobriram fundações romanas e, debaixo do porão, acha-se uma caverna em cujo solo se descobrem ferramentas de sílex, na camada superior, e restos de fauna glaciária nas camadas mais profundas. Tal seria mais ou menos a estrutura de nossa alma.1

 

O sertão literário de Guimarães Rosa está nas bases da estrutura de vida do narrador, extensivo portanto às bases de estrutura de vida do ficcionista. O andar superior foi construído no século XX; o térreo (ligado ao sertão mineiro) data do século XVI, início da História do Brasil; mas, se houver uma observação minuciosa, será possível compreender que esse Sertão tem seu alicerce cravado na Era Medieval. Observando as camadas mais profundas, apreende-se uma origem sueva localizada numa fase pré-medieval de Portugal, em um tronco familiar bárbaro, cujo apelido (sobrenome) de família era Guimaranes.

 

Eis o depoimento de Guimarães Rosa ao crítico Lorenz:

 

Para sermos exatos, devo dizer-lhe que nasci em Cordisburgo, uma cidadezinha não muito interessante, mas para mim, sim, de muita importância. Além disso, em Minas Gerais: sou mineiro. E isto sim é o importante, pois quando escrevo, sempre me sinto transportado para esse mundo: Cordisburgo. Não acha que soa como algo muito distante? Sabe também que uma parte de minha família é, pelo sobrenome, de origem portuguesa, mas na realidade é um sobrenome suevo que na época das migrações era Guimaranes, nome que também designava a capital de um estado suevo na Lusitânia? Portanto, pela minha origem, estou voltado para o remoto, o estranho. Você certamente conhece a história dos suevos. Foi um povo que, como os celtas, emigrou para todos os lugares sem poder lançar raízes em nenhum. Este destino, que foi tão intensamente transmitido a Portugal, talvez tenha sido culpado por meus antepassados se apegarem com tanto desespero àquele pedaço de terra que se chama o sertão. E eu também estou apegado a ele.2

 

O Sertão ficcional roseano simboliza a casa inesquecível do Artista Literário. Dentro desta casa íntima há um determinado Sertão que não se esquece, por isto ele diz a Lorenz, na Entrevista, que leva o sertão dentro dele e que o mundo em que vive é também o sertão3. Sua literatura nasceu de sua vida íntima e sua verdade existencial se orienta através das recordações do sertão. A memória (matéria épica) é insuficiente para transmitir sentimentos que remontam a pré-fase da humanidade, inserida na alma de um único homem. Pelo prisma psicológico/filosófico de Gaston Bachelard (POÉTICA DO ESPAÇO), a primeira morada será sempre a base de futuras recordações.