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Ainda dialogando com Bachelard, reflito nas duas linhas distintas de imaginação destacadas em seus estudos filosóficos: a imaginação que dá vida à causa formal e a imaginação que dá vida à causa material. Essas duas imaginações classificam, separadamente, as forças imaginantes da mente. A imaginação que dá vida à causa formal se submete ao impulso do pensamento que tem desejo de novidade, buscando nas formas exteriores da realidade apenas os aspectos pitorescos e primaveris. A imaginação que dá vida à causa material, ao contrário, escava o fundo do ser, procurando encontrar o primitivo e o eterno. É portanto a imaginação que busca o aprofundamento na substância.

 

A imaginação que dá vida à causa material (imaginação material) é própria da matéria terrestre. Repleta de imagens estáveis e tranqüilas, poderá ser modelada, uma vez que se atém aos aspectos perceptíveis/palpáveis da realidade.

 

Essas duas linhas da imaginação estão presas à realidade concreta. A imaginação formal se prende à forma exterior da matéria. A diferença é que, enquanto uma (a imaginação formal) se diverte com o inesperado, a outra (a imaginação que dá vida à causa material) quer aprofundar-se na história e buscar na natureza o princípio de tudo, o princípio da própria matéria.

 

Paralelamente a essas duas imaginações da matéria terrestre, há também as imaginações falada e criadora:

 

A imaginação falada é a imaginação que reproduz a realidade, submetida à percepção e à memória e não pode ser modelada pelas mãos. Ela é modelada pela fala e pela percepção do impalpável. Esse tipo de imaginação não se aplica à matéria terra: é a imaginação das matérias inconsistentes e móveis (a água, o fogo, o ar), composta por imagens instáveis.

 

A imaginação criadora, ao invés de simplesmente reproduzir, duplica — ou recria — a realidade, produzindo uma nova realidade. Ela não é apenas formada, materializada, falada; ela ultrapassa a realidade, já que, poderosamente criadora, vigora em função do irreal, reconhecendo os valores da solidão. Na imaginação criadora, as imagens são imaginadas, fazem parte do imaginário-em-aberto do indivíduo, pois que se originam do fundo do ser que imagina. O ser, possuidor da imaginação criadora, produz em seu íntimo as imagens que formarão posteriormente uma realidade (literária) diferente da realidade substancial. Assim, a imaginação criadora está indissoluvelmente ligada à imaginação literária (falada/escrita). Há a separação, porque nem sempre os possuidores da imaginação criadora desenvolvem seus talentos literários.

 

Por último, um esclarecimento sobre as quatro perspectivas do pensamento, assinaladas por Bachelard e recuperadas transmutativamente nestas argumentações, para o embasamento de meu particular reconhecimento da obra roseana. São elas as perspectivas anulada, dialetizada, maravilhada e de intensidade material infinita, as três últimas ligadas aos aspectos materiais do pensamento, valendo-se, cada uma, numa ordem hierárquica, dos pensamentos formal, material, falado e criador.

 

A perspectiva anulada estaria simplesmente ligada ao pensamento formal: linear, sintagmático, descritivo. A adjetivação anulada não significa depreciação, significa apenas a forma correta que o filósofo encontrou para nomear a perspectiva do sujeito que olha sempre horizontalmente, sem questionamentos existenciais. A perspectiva anulada reproduz os reflexos exteriores da realidade (as cores e as formas de uma natureza encantadora e sem máculas).

 

A perspectiva dialetizada, apesar de ainda estar presa ao plano sintagmático, já direciona o olhar questionador, oscilante, para a descoberta do que se oculta na natureza, em outras palavras, é uma perspectiva ligada aos aspectos materiais da realidade (presa oscilatoriamente à imaginação material), caracterizada apenas pelo elemento terra. A visão dialetizada torna-se aguçada, penetrante, propensa a movimentos pendulares, transformando o que se deseja ver em objeto, ou mesmo se colocando no interior desse objeto, para ver com maior nitidez.

 

A perspectiva maravilhada está intimamente unida à perspectiva dialetizada. Depois do olhar inquisidor e oscilante, ainda linear (perspectiva dialetizada), surge um novo olhar maravilhado, propenso à verticalização do pensamento criador. O sujeito se extasia diante da grandeza que descobre. As minúcias da realidade se dilatam indefinidamente, porque a visão do sujeito começa o seu processo de elevação em direção a um olhar paradigmático, próximo ao individualismo. A perspectiva maravilhada propõe-se então a descrever o interior da matéria observada. Nesse estágio, o observador/sonhador não pára mais de observar/sonhar. Ao alcançar esse estágio, Rosa premiou-nos com a sua grande obra GRANDE SERTÃO: VEREDAS.

 

Posteriormente, submetido à perspectiva substancial infinita, o olhar do sonhador/ intérprete se desprende totalmente do plano horizontal, porque o sujeito já se transformou em indivíduo e já alcançou o estágio da pura intuição. O olhar agora não se prende apenas à descrição das formas da matéria (exteriores e interiores), prende-se à descrição dos movimentos da matéria, detectando imagens novas, criando imagens dinâmicas a partir das imagens estáveis. O olhar móvel e paradigmático propiciará então uma descrição minuciosa das qualidades voláteis da matéria, ou melhor, das matérias que compõem a realidade vital, já que observará, por vários ângulos interativos, as formas antes indefinidas: o fogo, a água e o ar. As obras finais de Guimarães Rosa, a começar de PRIMEIRAS ESTÓRIAS, adquiriram forma ficcional através dessa perspectiva.