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II – um sertão inesquecível

 

II.1 - Sertão: Casa da Infância

 

Este estudo realçará a atuação do narrador de A hora e vez de Augusto Matraga, mas enfatizará com maior vigor a influência social do Artista como cidadão moderno, possuidor de atributos que o fazem respeitado, indutor de boas impressões, detentor de grande prestígio ante o grupo que o circunda, mas que, mesmo alcançando altas honrarias na escala social, deseja projetar, segundo sua ótica reminiscente, as qualidades ímpares de seu espaço de origem, sob a proteção do discurso ficcional. Observarei, assim, o agora indivíduo impondo a sua visão do sertão ao grupo que o cerca, direcionando o olhar (do leitor), encenando um espetáculo em que ato principal é demonstrar o valor de uma região não valorizada socialmente. O escritor, ante um núcleo social exigente (etnocêntrico), já alcançou credibilidade e pode conscientemente desempenhar seus diversos papéis, ou dissimular-se debaixo de suas diversas máscaras, mas pode também transmitir uma parte da autenticidade de seu próprio eu (sob a proteção da ficção), como homem originário de um espaço rude, mas verdadeiro, se comparado com a degradação da moderna sociedade dominante.

 

Entrincheirado atrás da máscara, o ser mascarado está ao abrigo da indiscrição do psicólogo. Rapidamente encontrou a segurança de um semblante que se fecha.42

 

O sujeito do sertão mineiro (aquele que recebeu ao nascer valores comunitários antigos, mas posteriormente evoluiu-se socialmente) não consegue adaptar-se aos conceitos de vida da modernidade. Assimila valores degradados, dissimula-se, servindo-se de diversas máscaras, ficcionais ou não, mas permanece consciente de suas origens. Entrincheira-se atrás de um ou vários disfarces cotidianos, os quais o farão aceito pelo grupo citadino que o admitiu em seu meio. Socialmente, há a vontade de ser outro, de desvincular-se dos valores do berço, de ascender-se infinitamente na escala social e cultural da vida moderna, mas, por baixo da máscara, permanece o rosto primitivo, consciente de suas origens e das tradições que o marcaram.

 

O anteriormente sujeito, submetido às determinações do mundo, em um momento de sua trajetória de vida, deixou seu rosto sertanejo para trás e adquiriu diversas faces que o introduziram na vida moderna. Essas faces compuseram os diversos talentos adquiridos com os estudos. Esse sujeito do sertão, ou se quiserem, nato de um pequeno burgo incrustado no sertão, transformou-se em médico, soldado, diplomata, poliglota, escritor, graças a sua incomum capacidade de recriação ficcional. Mas houve um momento, nesse trajeto do tempo vital (momento ativado pelo repouso fervilhante, o qual antecede o cogito(3) da individualidade consciente), que sentiu o desejo de retomar o antigo rosto (primitivo), e isto já não seria possível dentro de sua diacronia de vida, mas viável mediante as forças criadoras da imaginação.

 

Valendo-se da ficção, demonstrou sua face verdadeira, seu rosto de homem sertanejo, procurando convencer os detentores do poder intelectual de seus verdadeiros atributos, enfim, despojou-se, demonstrando seu verdadeiro eu, oculto por toneladas de exigências modernas, e dando-se a conhecer intimamente. Com esta atitude, representou um papel que poderia desacreditá-lo, mas, graças a sua influência e a sua criatividade, venceu a probabilidade de ruptura com o meio social.

 

O Artista do sertão brasileiro realizou a dissimulação por intermédio de seus narradores e personagens da primeira fase criativa, ostentando o sertão da infância (muito bem realçado entre o oculto e o visível), ao mesmo tempo em que se resguardou de uma provável crítica ferina, se não tivesse realizado o encobrimento de suas próprias intenções com eficiência.

 

Esse disfarce, realizado sob o patrocínio da magia da máscara, ou seja, realizado com o apoio da criação literária, projetou verdades profundas que jamais seriam captadas em textos simplesmente formais. Observa-se, ao longo da obra roseana, a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, uma dissimulação invertida (só concebível no espaço das mágicas probabilidades ficcionais), em que o Artista, mascarado, sob a roupagem de seus personagens da primeira fase autenticamente criativa, ou segunda fase no cômputo geral de sua obra, readquiriu sua face de origem (seu rosto primitivo) e dissimulou-se ante o grupo social que o abrigou e o enalteceu. A vontade de dissimulação, orientada pela intuição ficcional, ao invés de direcioná-lo no sentido de desejar ser outra pessoa, como aconteceu antes no plano social, inspira-o a um retorno, inspira-o a ser o seu eu verdadeiro, somando-se a esse eu de origem todos os outros eus adquiridos na sociedade moderna. "Uma fenomenologia da dissimulação", segundo Bachelard, "deve estudar a magia da máscara, ao invés de estudar a dissimulação pura e simplesmente; deve remontar à raiz da vontade de ser outro que se é"43; mas o Artista (aquele produtor de verdadeira Arte Literária), distanciado da psicologia da dissimulação usual, já superou e ultrapassou esta vontade de ser outro e agora, novamente, deseja ser ele mesmo.

 

A vontade de ser outro ficou no passado, situada nos primeiros anos vividos em uma outra cultura, totalmente diferente da recebida ao nascer. A vontade de ser outro ficou no passado, quando ele se propôs a alcançar o cogito(2) de sua escalada ao Conhecimento. Agora, instalado comodamente no cogito(3), plano do ser-em-si ou do indivíduo consciente, a dissimulação se inverte pelo poder da magia dos pensamentos singulares, e o agora indivíduo deseja ser ele mesmo, ou melhor, não há motivos que o impeçam a retomar ficcionalmente seu rosto primitivo. Conseqüentemente, o Artista pode representar diversos papéis na sociedade elitista e, mesmo integrado ao grupo citadino, posteriormente, pode também recuperar sua face autêntica, verdadeira, sob o aval (a proteção) da criação literária. E isto só se tornou possível, porque o indivíduo Guimarães Rosa conseguiu ser convincente nessas representações e assim ser aceito pelo grupo do mundo da modernidade.

 

A partir do momento em que queremos distinguir o que se dissimula sob um rosto, a partir do momento em que queremos ler em seu rosto, tomamos tacitamente esse rosto por máscara.44

 

No mundo da modernidade, o homem (submetido à perda da identidade heróica) se dissimula em diversas máscaras. Mesmo sendo algo artificial, a máscara é uma espécie de abrigo. Por esta ótica, cada personagem roseano da primeira fase criativa (a partir de A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA), sob a proteção da realidade ficcional, é uma máscara de seu criador, escritor do século XX, o qual, ao invés de velar, desvela seu próprio íntimo. Posso asseverar, com a contribuição da fenomenologia Bachelardiana, que o singular escritor, durante sua trajetória de vida, despojou-se de seu rosto sertanejo ao aceitar as máscaras da modernidade; mas, ficcionalmente, num momento qualquer, momento de repouso ativado, resolveu retornar ou retomar o rosto de origem. Os personagens da primeira fase criativa (a partir de A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA) são na verdade máscaras virtuais, desvelando o próprio devir da dissimulação; essas máscaras virtuais, no âmbito da literatura, transformam-se em rostos ficcionais de uma realidade autêntica, porque são criação de um indivíduo que já iniciou sua escalada na direção da consciência pura, ancorada no último patamar do tempo do pensamento, ainda ligado à realidade vital. Essa consciência já não necessita de máscaras que a escondam, que a abriguem das indiscrições alheias. Assim, os personagens iniciais da primeira fase autenticamente criativa de Guimarães Rosa são máscaras susceptíveis de se realizarem como rostos, já predeterminadas como autênticas, fundamentadas em condições de se realizarem.

 

Esses rostos ficcionais ou máscaras virtuais mostram o desejo da contradissimulação, ou seja, a "sinceridade da dissimulação, o natural do artificial"45, como o quer Bachelard. As imagens retratadas refletem a consciência singular do Artista moderno, direi melhor, o Artista da estética pós-modernista (se penso no século XX como um século de transição de Eras), originário de um mundo comunitário, primitivo, mas que alcançou diferentes e diversas experiências de vida em um mundo em que a comum-unidade já não existe, onde o ser se encaminha cada vez mais em direção à inevitável dissolvência dos valores verdadeiros. Esse indivíduo, enquanto Artista, ousou rejeitar as próprias dissimulações cotidianas, para readquirir uma espécie de máscara primordial, sob a aparência de seus personagens. Nesse caso específico, prefiro usar a terminologia máscara primordial, porque agora, substancialmente, não há como recuperar o primitivo rosto sertanejo.

 

O ser, agora indivíduo, novamente se dissimula na sua contradissimulação, porque, mesmo sendo senhor absoluto de um plano da consciência, ligado ao tempo do pensamento a que Bachelard denomina como cogito(3), ele não pode negar o já adquirido socialmente e culturalmente. Isto seria negar seu desempenho na sociedade, seria negar a sua própria influência sobre o grupo citadino, ou mesmo, seria negar sua consciência tridimensional, sustentada pelos três cogitos que compõem a existência racional. Negar a sua condição atual na sociedade, seria o mesmo que negar a sua vontade de novamente ser sertanejo.