Ferreira de Castro retoma o discurso de viajantes, cronistas e cientistas sobre a Amazônia à medida que os motivos que compõem a trajetória do protagonista Alberto no seringal são os da confrontação com o meio bárbaro. O enredo do romance termina com a destruição da fonte de injustiça mas também com a possibilidade de Alberto deixar o meio que poderia levá-lo à condição de fera.

            Toda a constituição do enredo se volta para a aprendizagem subordinada à libertação do meio. Alberto perde a soberba ao passar pela experiência do seringal, constatar o sistema de espoliação do trabalho humano ali implantado, mas o mesmo meio que o faz descobrir a solidariedade para com os homens humildes que consomem a vida num trabalho de que não tiram proveito se torna o algoz de todos esses homens e dele próprio. Dando este contorno à obra, o ficcionista segue uma tendência do romance naturalista, destacada por Brayner:

 

Reduzindo todos os homens a uma mesma fórmula – criaturas dominadas pelo meio, raça e momento – o romancista naturalista parte sempre do princípio mestre que todos os homens são fundamentalmente iguais. Não importa a classe social a que pertençam e nem mesmo o grau de cultura a que se liguem; submetidos ao ambiente e às paixões instintivas, agem todos de forma idêntica [...].[1]

 

            A selva significa essa redução da personagem protagonista que chega ao meio desconhecido como um ser distinto perante os outros. É estudante de direito enquanto os demais recrutados não possuem instrução; leva para a barraca livros entre seus pertences ao passo que os demais muitas vezes além das roupas do corpo levam apenas as ferramentas básicas aviadas pelo seringalista; é moço fino, não adaptado para o trabalho grosseiro de penetração na mata e corte das seringueiras e os outros, seres rudes dos quais se espera adaptação ao meio. Entretanto, o meio irá igualar o protagonista no decorrer da narrativa aos outros. O cerne desse momento se estampa na passagem do romance em que o protagonista, ao se olhar no espelho, não vê sua fisionomia atual, mas o mesmo rosto embrutecido, animalizado dos homens com os quais labutou outrora nas estradas de corte. A única chance que se apresenta à não capitulação ao meio é deixá-lo, fugir de sua barbaria em busca da civilização. Essa é a ambigüidade da realização social do romance: documentar as relações econômicas que promovem o ciclo e, ao mesmo tempo, apresentar uma justificativa determinista, fatalista, para essas relações.

 

Beiradão: a percepção de um escritor nativo sobre o ciclo

 

            A prerrogativa de escrever sobre o “ciclo da borracha” tendo sido testemunha ou partícipe do processo dá-se com alguns escritores. Entre eles, incluem-se Ferreira de Castro, Humberto de Campos, Alberto Rangel, Carlos de Vasconcelos e Álvaro Maia. As experiências de Ferreira de Castro e Humberto de Campos os situam no barracão, executando as tarefas do dia-a-dia que ali se faziam necessárias. O primeiro fazia pequenos serviços não tendo, segundo Jaime Brasil, trabalhado na estrada de corte por ser ainda muito jovem. O segundo foi gerente de seringal. Quanto a Alberto Rangel e Carlos de Vasconcelos, executaram como engenheiros serviços de demarcação de terras, o que lhes possibilitou também um contato com os seringais.

            A particularidade que cabe a Álvaro Maia é ter conhecido o mundo do seringal não como alguém que vem de fora, mas que nasceu nele. O cenário de seu nascimento é o sítio- seringal Goiabal, localizado à margem esquerda do rio Madeira, no município de Humaitá. Seu pai foi um imigrante da região cearense do Crato, descendente de família próspera que, como outros, veio para a Amazônia, seduzido pela possibilidade de ganhar dinheiro com a borracha, e a mãe, uma amazonense, herdeira de proprietário de seringais no rio Madeira, que estudou em internato religioso. Em sua obra Beiradão, esses traços da família são reproduzidos através das personagens Fábio e sua esposa. Maia fez os primeiros estudos com a mãe, que o alfabetizou, e depois, seguindo um roteiro comum à condição de filho de seringalista, completou os estudos fora do Amazonas. Primeiramente, em Fortaleza e depois no Rio de Janeiro onde se bacharelou em Direito na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais.

            Conforme ressalta Santos[2] Álvaro Maia veio a tornar-se uma liderança política estadual, quando regressou dos estudos, por fazer parte ou ser oriundo de um grupo dominante local que lhe possibilitou primeiramente ocupar cargos públicos como redator da Assembléia Legislativa, auditor da Força Policial do Estado do Amazonas, Secretário da Superintendência do Território Federal do Guaporé, Secretário da Comissão de Propaganda e Organização do Centenário da Independência, Secretário da Municipalidade de Manaus, Diretor da Imprensa Pública.

            Contando com apoio de setores tradicionais da economia local, ligados ao comércio e ao extrativismo, Álvaro Maia é nomeado por Getúlio Vargas interventor federal do Amazonas em 1930, sob a indicação de Juarez Távora, delegado federal do Norte. Essa interventoria foi exercida apenas até 1931, quando Maia foi exonerado por Vargas em virtude de ter dissolvido o Tribunal de Justiça do Amazonas, causando descontentamento entre a classe dos juízes, que recorreram a Vargas. Maia retorna ao poder em 1934, elegendo-se indiretamente governador constitucional do Estado do Amazonas. Graças à formação de um secretariado constituído por parentes e cooptados políticos, mantém-se no cargo. Em virtude do golpe político do Estado Novo, em 1937, torna-se interventor federal e governa até a queda de Vargas, em 1945. Em 1946, é eleito senador constituinte. Por intermédio de eleições diretas, volta ao governo do Amazonas em 1951 e, em 1954, é derrotado em nova campanha política. Só consegue retornar ao cenário político em 1966, elegendo-se senador pela Aliança Renovadora Nacional (ARENA).

            O elo com o seringal e a carreira política marcam  a obra do escritor Álvaro Maia, sendo que o ambiente do seringal dá-lhe o conteúdo e a política o delineamento ideológico. É o escritor amazonense que mais se voltou para os motivos ensejados pela vida no seringal e os motivos correlatos a ela. A maioria da produção abordando o seringal foi publicada a partir dos anos 1950, durante o retorno à literatura após as derrotas políticas.[3] Em 1956, é editado Gente dos seringais; em 1958, Beiradão e Buzina dos Paranás; em 1963, Banco de Canoa; em 1966, Defumadores e Porongas. Buzina dos Paranás destaca-se nessa série de narrativas por ser um livro de poemas, mas os motivos do seringal trabalhados nos outros livros não estão ausentes, uma vez que o autor dedica também poemas à seringueira e a assuntos abordados nas demais obras, como, por exemplo, a figura da parintitin Narcisa, mãe de leite índia, ou aos aviões “Catalinas” que transportavam passageiros e cargas e levavam auxílio médico aos seringueiros.

            Existe uma continuidade nos assuntos abordados em Beiradão e nas demais obras. Uma vez que sua publicação é anterior à maioria delas, entendemos que o autor pretendeu desdobrar o seu conteúdo através dos outros livros. Aproveitando um título que o escritor dá à quarta parte do livro Banco de canoa, podemos dizer que as narrativas contidas em Beiradão e nas outras obras  são “histórias que se repetem.”



[1] Sônia BRAYNER, Labirinto do espaço romanesco,  p. 29.

[2] Eloína Monteiro dos SANTOS, Uma liderança política cabocla: Álvaro Maia,  p. 22-3.

[3] A estréia de Álvaro Maia no mundo das letras se deu em 1904, aos onze anos, quando foi publicado num jornal infantil o poema “Cabelos negros”, de sua autoria. Em 1925, foi escolhido príncipe dos poetas amazonenses no concurso promovido pela revista Redenção. Tendo tido seus textos poéticos publicados em jornais, só veio a reuni-los em livro em 1958, sob o título Buzina dos paranás. Durante as décadas de 1950 e 1960, publica os livros contendo narrativas e o romance Beiradão. O autor colaborou com a fundação da Sociedade Amazonense de Letras, posteriormente denominada Academia Amazonense de Letras.