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Juca das Neves

 

NEUZA MACHADO

 

 

“Era impossível salvar o Armazém das Novidades do qual só restavam móveis velhos, um luxo fora de moda. Apesar de tudo, Ribamar abria diariamente a loja”, pois dela dependia a sua futura projeção social. Juca das Neves, “um dos ricos” que ficara pobre, à época da recessão, “envelheceu logo”, “era um homem aniquilado”. “Naquele dia se vencia uma das letras que ele não podia saldar. Por isso estava afundado na cama, à espera da morte”. “Mas Ribamar apareceu no limiar da porta”, acenando-lhe com a possibilidade de recuperação financeira e social.

 

 

Por mais que me apegue à filosofia bachelardiana, para refletir e/ou teorizar sobre a endosmose do segundo narrador rogeliano, levando o seu primeiro narrador à condição de personagem ficcional sem poder narrativo, e, com isto, impelindo-o a interagir com o recanto mais profundo de sua própria “casa onírica”, não posso deixar de perceber que “este” mesmo narrador possui conhecimento histórico-político de elevadíssimo nível. Assim, este parágrafo reflete, neste instante ficcional e metafísico, um interessante momento paradoxal. Ao mesmo tempo em que o primeiro narrador se transforma em importante personagem (de fora para dentro), visitando os recantos íntimos da “casa onírica” do segundo, “este” segundo narrador passa a desenvolver um novo “olhar de dentro para fora”, avaliando, inclusive, a derrocada financeira das influentes famílias da cidade, naquelas antigas fortificações amazonenses. Os anos de perdas sócio-financeiras foram drásticos para muitas importantes famílias, muitas de origem judaico-francesa. Os brilhos dos sobrenomes notáveis - quase todos estrangeiros - já não causavam reverência à nova sociedade que estava surgindo, provinda das camadas populares. Aquele fora o momento do seringueiro escravo, do retirante nordestino que, durante anos, muito lutou pela vida, naqueles entrançamentos da Floresta, “a ferir a árvore da borracha, a defumar o látex, a empilhar as pélas de borracha, a ouvir aquele permanente ruído de gorgulho oleoso do acotovelamento das águas escuras do Igarapé do Inferno”[lix], pois os poderosos seringalistas estavam acuados pelos novos rumos da política monetária. Juca das Neves estava vivendo o seu tempo azarado de bancarrota, mas, a ele estava destinado um anjo salvador. Foi aí que Ribamar de Sousa apareceu “no limiar da porta”. O herdeiro de fato do “ontem eterno” sócio-político, ou seja, o segundo narrador, não poderia buscar para si a honraria de salvar o Armazém das Novidades, e, por conseqüência, a Cidade. As entrópicas transformações - sócio-políticas - contrárias às Leis Políticas anteriores, naquele momento, determinavam as novas direções partidárias. Aquele era um instante de impasse histórico, a privilegiar o oprimido em detrimento do opressor.

O fogo da labareda da serpente

Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel