A verossimilhança que procurou manter em relação a um mundo que fez parte de sua experiência de vida deu a Ferreira de Castro a possibilidade de ser defendido quando foi acusado de detratar a realidade amazônica.[1]

            O cosmopolitismo de Ferreira de Castro, as viagens que empreendeu a começar pela saída de Portugal ainda menino, a chegada a Belém do Pará e depois a partida para o rio Madeira, a viagem de volta ao mundo na idade adulta deram-lhe a possibilidade de conhecer diferentes países. Daí a sua obra apresentar expressões culturais tão diversas: do Brasil, e nele é preciso abrir um parêntese para a Amazônia, da Espanha, da França e de Portugal, sua terra de nascimento. Podemos deduzir que a experiência de viajante foi fundamental na construção da obra do romancista. Jaime Brasil, biógrafo do romancista,  enfatiza que “[...] sem a ida ao Brasil, na idade e nas circunstâncias em que o fez, Ferreira de Castro, embora viesse a ser um grande escritor, não teria escrito A selva [...].”[2] Para Magalhães Júnior, A selva é um romance brasileiro pelo seu tema.[3] Ferreira de Castro é um autor que desafia as fronteiras literárias e enseja a discussão que envolve nacionalidade e tema na literatura.[4]

            A nomeação do romance como amazônico parte do fato de que o ambiente em que se passa e a sua temática estão voltados para essa região, mas um outro fato que também deve ser levado em consideração é que esse romance tem um criador e um protagonista de nacionalidade portuguesa. Nesse ponto, a experiência de vida e a criação estão ligadas. Se, por um lado, não há impossibilidade de um romancista escrever um livro sobre um mundo que não conheceu pessoalmente, por outro, há também uma necessidade que o compele a escrever sobre um mundo que faz parte de sua experiência. Em A selva, a particularidade da experiência se confirma não somente pelas próprias palavras do autor como também porque, diferentemente do que ocorre em outro romance de sua autoria, A curva da estrada, em que a ação se passa na Espanha e é protagonizada por personagem espanhol, Ferreira de Castro criou para o romance que se passa em ambiente amazônico um protagonista português. A intenção do autor, portanto, era enfocar o ambiente amazônico pelo prisma de um imigrante. Convém destacar que o romance é documental no sentido de que o autor registrou aquilo que de fato observou , dando azo à criação do romance, não é, porém, um romance autobiográfico, pois contém mais distanciamento do que aproximação entre autor e protagonista. Um comentário do autor é esclarecedor a esse respeito: “Se é verdade que nesse romance a intriga tantas vezes se afasta da minha vida, não é menos verdadeiro também que a ficção se tece sobre um fundo vivido dramaticamente pelo seu autor[...]”[5]. Como Alberto, o protagonista, Ferreira de Castro foi enviado para o seringal. As condições que motivaram as viagens de ambos coincidem em alguns pontos, mas também se diferenciam. Foram enviados ao seringal porque tornaram-se dispendiosos, Alberto para o tio, Ferreira de Castro para o seu protetor. Alberto era um homem com convicções formadas, participara em Portugal da revolta monarquista. Ferreira de Castro, um menino pobre com intenção de escrever textos literários. Quando se trata da personalidade, nota-se uma franca oposição. Ferreira de Castro foi um humanista que não se filiou a facções políticas [6]  Na ficção, Alberto é um monarquista que como tal defende os privilégios dessa classe, despreza  os humildes. Na terceira classe do barco onde vem a se encontrar pelas contingências da sorte a caminho do seringal, não quer se misturar aos nordestinos porque considera a natureza destes inferior. Despreza a democracia e a igualdade humana. Após um longo caminho de humilhações, sofrimento e resignação é que Alberto passa a ver a vida e os seres humanos de modo diferente, abandonando, no final da narrativa, os princípios monarquistas. A evolução por que passa o protagonista foi preferida pelo romancista que declara ter abandonado os planos de criar uma personagem estática: “[...] A personagem assim apresentada tinha idéias já formadas sobre a injusta organização do mundo em que vivia e, naturalmente, veria o mundo em que ia viver com uma atitude moral preconcebida, com um espírito apenas de confirmação, o que diminuiria, para quem não aceitasse as cores do seu horizonte, o sentimento de verdade naquilo mesmo que era verdadeiro. Preferi, portanto, uma figura evolutiva [...][7].



[1] Em “Um romance amazônico”, Humberto de Campos aponta a originalidade de A selva justamente pelo fato de o romance ter sido escrito por um autor que viveu no seringal. Para Campos, somente a vivência neste poderia resultar na sua justa expressão. Comprova a legitimidade da escrita de Ferreira de Castro e absolve-o das críticas de ter sido autor de inverdades, recorrendo a exemplos presenciados por ele próprio como gerente de seringal, demonstrando que Ferreira de Castro não expressou exageros em sua obra (1962, p. 427-467).

[2] Jaime BRASIL, Ferreira de Castro: a obra e o homem,  p. 21.

[3] MAGALHÃES JÚNIOR Apud Jaime BRASIL, Ferreira de Castro: a obra e o homem,  p. 95.

[4] Abordando os problemas que envolvem a nacionalidade na literatura brasileira, Lúcia Miguel Pereira questiona a sua existência, notando que as realidades brasileiras não podem apresentar uma feição homogênea: “[...] a brasilidade totalitária é um mito, uma lenda, um tabu a que se apega a nossa vaidade. Não existe, nem poderia existir, ao menos no sentido em que o queremos tomar, de feitio moral especificamente brasileiro, igualando os homens do Rio Grande do Sul, e os diferenciando dos outros povos [...]” (Regionalismo e espírito Nacional In: A leitora e seus personagens: seleta de textos publicados em periódicos (1931-1943) e em livros,  p. 39).  Quanto a Ferreira de Castro ser um escritor estrangeiro cujo romance trata da realidade amazônica, a autora faz a seguinte apreciação: “[...] É mesmo de notar que um dos grandes romances sobre o Brasil (ou sobre a Amazônia?) seja de um estrangeiro. Ao fato acidental de ter nascido em Portugal o Sr. Ferreira de Castro devemos não se ter o ‘espírito brasileiro’ encarnado num seringueiro.” (Ibid, p. 39).

[5] José Maria FERREIRA DE CASTRO. Pequena história de A selva. In: José Maria FERREIRA DE CASTRO. A selva, 1972, p. 27

[6] Jaime Brasil faz notar que o romancista, enquanto homem independente, “detesta a política e as suas baixas manobras, mas ama a liberdade com fervor religioso.” (Ferreira de Castro: a obra e o homem, p. 52). A feição humanista da personalidade de Ferreira de Castro é ressaltada na mensagem que lhe é entregue em Portugal por vários intelectuais em 20 de junho de 1953, subscrita por milhares de cidadãos portugueses: “[...] Todos aqueles que conhecem Ferreira de Castro sabem que a piedade humana, que vibra em cada uma das suas páginas, não é um simples processo literário e muito menos um artifício do seu talento de escritor; esse mesmo amor e compreensão vivem no romancista, são a sua força, a sua riqueza e tormento, o traço mais fundo na sua personalidade, são ele mesmo debruçado sobre a dor do mundo. Dificilmente se encontrará outro escritor cuja obra seja, tão fielmente, a expressão da sua própria alma. (Apud Jaime BRASIL, Ferreira de Castro: a obra e o homem,  p. 76).

[7] José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva,  p. 30.