O processo intensivo de urbanização da cidade de Belém deu-se em grande parte durante a intendência de Antônio Lemos. Em sua administração, a cidade ganhou pavimentação de ruas, construção de praças e jardins, usina de incineração de lixo, limpeza urbana e um código de posturas que prescrevia a correta utilização e manutenção do espaço urbano reestruturado.[1]

            O padrão de urbanidade que caracterizava as reformas promovidas por Lemos refletia os gastos dos novos ricos da borracha que se pretendiam habitantes de uma cidade com ares europeus, preferencialmente franceses. Em sua obra Galvez, imperador do Acre, Márcio Souza satiriza os hábitos desses novos ricos, contrastantes com suas origens locais:

 

Já se disse que Dona Irene era uma espécie de folclore familiar de Belém. Vinha de uma família humilde e tomara o coração do prefeito com suas ancas largas, muita vivacidade e mais de cem quilos de paixão. Ela procurava se prevenir contra as falhas de sua infância pobre, mas quase sempre isso não era possível. Mas era uma criatura necessária à sociedade paraense que assim podia medir por ela o padrão de suas boas maneiras. Mulher simples e filha do rio Madeira, tinha se casado com o prefeito quando este ainda era um jovem estudante de Direito. Casaram escondido e a família, para evitar um escândalo, embarcou os dois enamorados para o Rio de Janeiro, onde mantiveram Dona Irene prisioneira por três anos, aos cuidados de um preceptor francês e uma governanta alemã. Saiu essa força da natureza que cheirava a patchuli e pensava que o cometa de Halley era um número de circo. Mas colecionava queijos raros que era a paixão de sua governanta de Potsdam[2]

 

 

            Assim como Belém, Manaus, capital do Amazonas, também passou por um processo de reestruturação durante o período áureo da economia da borracha, mudou radicalmente seu traçado. Sobre o aspecto da cidade até 1880, antes de sofrer essa reestruturação, Daou comenta:

 

Era marcante a precariedade das ruas estreitas entrecortadas por igarapés, a simplicidade do casario e a exclusividade do pequeno comércio. A morfologia social era marcada pelo caráter disperso da população que permanecia boa parte do ano pelas matas, dedicada às atividades de coleta, caça e pesca [...].”[3]

 

            Foi durante o governo de Eduardo Ribeiro,[4] a exemplo do que ocorreu em Belém com Antônio Lemos, que Manaus ganhou ares de cidade moderna, passando a ser considerada a ‘capital da borracha’. A cidade sofreu uma planificação, igarapés foram aterrados,  as ruas foram modificadas para facilitar o trânsito. A água foi canalizada e um reservatório de água construído. Houve também a conclusão de obras monumentais como o Teatro Amazonas, o Palácio da Justiça, além da construção de escolas, pontes. Em 1893, a cidade passa a ter seu Código Municipal para restringir os comportamentos indesejados e estimular os comportamentos apropriados a uma cidade moderna.  Como ocorrera com Belém, “Manaus modernizada atendia particularmente aos interesses da burguesia e da elite ‘tradicional’, vinculada às atividades administrativas e burocráticas [...].”[5]

            É preciso não perder de vista que o “crescimento” das duas capitais amazônicas significou o transplante de uma idéia de progresso, fomentada com o ciclo, e que não alterou a face colonial da economia amazônica, dependente das contingências do mercado internacional. Urbanidade, civilização, progresso, tudo isso parece não se coadunar com trabalho semi-escravo, condição de vida indigna e animalizada nas estradas dos seringais e castigos físicos e morais para os que se recusassem a aceitar as regras do trabalho, como lembra Souza.



[1] Apesar de essas mudanças indicarem que a cidade passava a ter melhores condições de higiene e a desfrutar de mais opções de lazer, Maria de N. Sarges destaca que “a expressão modernizadora de Belém subordina-se mais às necessidades econômicas do que aos objetivos práticos, ou seja, ao atendimento das necessidades básicas da população” (Ibid., p. 138). Acentuando que as medidas saneadoras e remodeladoras do espaço urbano visavam atender principalmente aos grupos enriquecidos pelos lucros da borracha, a autora ressalta: “[...] Entretanto, todo esse ‘progresso’ era localizado e dirigido à área central da cidade, onde habitava a elite local e parte da classe média nascente” (Ibid., p. 142).

[2] Márcio SOUZA, Galvez, imperador do Acre,  p. 32-3.

[3] Ana Maria DAOU, A belle époque amazônica,  p. 34.

[4] Eduardo Ribeiro assumiu o governo provisório em 1890, quando Augusto Ximenes de Villeroy  teve de se afastar por motivo de doença de sua esposa. Já em 1891, Eduardo Ribeiro é exonerado do cargo. Em 1892, volta ao governo para um período de administração que irá até 1896. É nesse período que Ribeiro realiza as obras que iriam transformar a vila em cidade (Cf. Agnelo BITTENCOURT, Dicionário amazonense de biografias: vultos do passado,  p. 194-196).

[5] Ana Maria DAOU, A belle époque amazônica, p. 36.