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LUCILENE GOMES LIMA

 

Ao fim da segunda parte do romance, Fábio viaja de retorno ao Ceará, tendo acumulado uma considerável experiência nos bamburrais através do trabalho de recenseamento. Conhecera a realidade muitas vezes grotesca dos centros onde famílias morriam à míngua atacadas pelas febres, permanecendo os corpos abandonados nas barracas para banquete das varejeiras, mucuras e urubus; acompanhara a saga de pioneiros no desbravamento das áreas inóspitas e admirava os que se tornavam proprietários às custas do próprio suor;  conhecera a selva além do registro nos livros e, ao contrário do que lera sobre o seu adormecimento, descobrira que ela jamais dormia; ouvira histórias escabrosas de crimes passionais e de vinganças e histórias sobre extorsão, fuga e revolta nos seringais; acompanhara as ingerências políticas abusivas dos coronéis no trato com os adversários e os eleitores.

            Em sua terra, apercebe-se de que mesmo tendo ali nascido, cursado o seminário e possuindo terras que lhe foram deixadas de herança para administrar, os bamburrais o haviam seduzido e o chamavam de volta. Teria de cumprir a missão de “[...] desbravar o Amazonas, incorporar os seringais ao movimento econômico do Vale [...].”[1] Imbuído dessa missão e também afetado pelo banzo da floresta, Fábio retorna para, desta vez, instalar-se definitivamente. Casa-se com a filha de um seringalista e com ela divide a abnegada dedicação à terra, fundando uma escola que recebe gratuitamente os alunos. Só não consegue manter-se isolado do jogo político local. O quadro em que o indivíduo se sente encurralado e é obrigado a aderir às hostes políticas locais é reiterativo nas narrativas de Álvaro Maia. Em Beiradão, ilustra-o a seguinte passagem:

 

[...] A politicagem era um retiário: os vencidos lhes caíam nas malhas, que se apertavam mais e mais, até a asfixia e o estrangulamento. Improvisavam-se imaginários crimes, perseguiam-nos em qualquer empresa que exercessem, demitidos de funções públicas, caluniados na vida pública e privada, e, ao fim, não escapavam de sovas e exílios disfarçados, impostos por implacáveis perseguições. Não podiam resistir à debandada nas cidades às vinditas tributárias e comerciais. Multiplicavam-se os impostos; executavam-se os atrasados, em prazos sumários; as embarcações, por precaução, não lhes tocavam nos portos. Nas vilas, se comerciantes, sofriam bloqueio oficial, e poucos lhes compravam as mercadorias.

- O chefe não quer!

Procuravam-nos à noite, passando ao longe sem pagar as dívidas. Se residiam num seringal, sofriam também feroz assédio. O camarada resistia algum tempo, mas não poderia ficar nesse crescente prejuízo e cedia. Transferia-se ao partido situacionista, assinando-lhe uma ficha, e tudo se modificava. Impostos reduzidos, taxações desclassificadas, recomendações ao coletor, silêncio ou elogios nos jornais. Perdia as fumaças de rebeldia, calava-se rendendo graças por não ser surrado ou expulso de sua propriedade.[2]

 

            Fábio mantém seu seringal, procurando não criar desafetos. Para tanto, equilibra-se entre a vida de pequeno proprietário rural e a execução de algumas funções públicas que as relações políticas lhe impõem e não lhe é conveniente recusar. O seu entendimento sobre a distorção da política, a politicagem, no entanto, está estabelecido: “[...] Servia-a para servir a amigos; suportava-a para não querer parecer melhor que os outros [...].”[3] Fechando os olhos para as hipocrisias políticas, vai tocando sua pequena propriedade. A missão de educar os filhos preocupa-o mais que a obtenção de lucros. Com a pouca produção de borracha, cobre as despesas essenciais, o que demonstra lhe bastar, apesar das críticas feitas por Segadais e Padre Silveira, apontando sua falta de ambição.

            A feição diferenciada de seringalista apresentada por Fábio é destacada ironicamente pelo narrador que o qualifica com jeito de pai de santo ao invés de comerciante. Seu procedimento de receber todos que lhe batem à porta, corrigindo contas, lendo e respondendo cartas e ouvindo histórias, dá-lhe ares de conselheiro.

            Precavendo-se contra tempos difíceis, Fábio constrói um pomar em que mistura espécies locais às do Pará e Nordeste e completa a sua defesa econômica com um pequeno rebanho. Nesta fase em que seu seringal prospera, surge uma epidemia de varíola nos seringais, levando-o a enfrentá-la com a família. Com a atenuante de já terem ele e a mulher apanhado a doença quando crianças, conseguem isolar os filhos e prestam auxílio aos enfermos. À epidemia, sucede uma outra calamidade: a economia da borracha entra em crise devido às plantações no Oriente. Contudo, Fábio e outros pequenos proprietários unem-se para enfrentar a crise, recorrendo às alternativas de sustentação econômica que haviam criado. Já “[...] os grandes seringalistas não se haviam preocupado com a lavoura e a pecuária: importavam sempre, porque a borracha dava para tudo [...].”[4] A lição tirada da crise é o endividamento e a ruína dos grandes proprietários, que sofrem também a pressão dos seringueiros, os quais ameaçam revoltar-se devido à suspensão de fornecimento de mercadorias. Inicia-se o êxodo de seringueiros principalmente nas regiões de seringais mais ricos, os dos rios do Alto: Machado, Jamari e Preto. Nos seringais mais pobres, dos beiradões, onde os seringueiros haviam feito roças, há uma tendência a permanecerem na terra apesar da crise. O aventureiro, como Segadais, novamente se prepara para partir, desta vez, tangido pela falta de perspectiva na terra onde buscava recursos de forma imediatista: “[...] ninguém tinha a loucura de morrer sem proteção, sem amparo, sem financiamento, num Vale que retornava às condições primitivas do descobrimento [...].[5] O romance acentua os posicionamentos opostos de Segadais e de Fábio no momento da crise, determinando o espírito arrivista de um e os princípios idealistas do outro:

 

Fábio amava as florestas e as águas. Alguém teria de ficar, porque aquele mundo verde não desapareceria, somente porque diminuía o preço de um produto. Outros produtos existiriam; outras explorações teriam de nascer; agitando indústrias e industriais. O futuro não seria para daqui a cem anos; era um futuro que se desenhava bem perto, tecido no presente. A crise parecia uma seca; voltaria o inverno nordestino, limpando o horizonte. Regressariam os fugitivos e encontrariam de pé, embora alquebrados, os vultos que não se arredaram dos portos bombardeados, como alavancas de resistência. O comerciante não é o homem do imediatismo, mas um idealista na ação que desenvolve. Nem todos se esforçam somente para ganhar dinheiro: abrem o caminho, como pioneiros, e milhares marcharão cantando [...].[6]

 

            Temperamentos opostos têm também os seringueiros dos rios do Alto e os dos beiradões na relação com os patrões durante a crise. O primeiro caso é ilustrado na situação da personagem Coronel Moreira, o rico potentado que perde o poder e o respeito que impunha aos seus trabalhadores. No segundo caso, está o seringalista representado pela personagem Fábio, que consegue manter uma relação cordial com seus trabalhadores. Enquanto Fábio precisa intervir como mediador junto aos seringueiros do coronel para que não tomem de assalto o seringal deste, atentando contra sua vida; com os seus seringueiros, pode conversar francamente, revelando-lhes a gravidade da situação “[...] porque ali tudo era de todos [...].”[7] Assim, os seus seringueiros, ao invés de exigirem pagamento e abandonarem o seringal, decidem permanecer ali mesmo, como o patrão, enfrentando os tempos difíceis. Quando a escassez de mercadorias se acentua, dificultando a obtenção de produtos básicos para a sobrevivência, o aparecimento do regatão se registra como uma tábua de salvação para os náufragos que decidiram permanecer. Desse modo, o narrador destaca: “[...] fugiram os aviadores, os seringalistas, mas, na hora difícil, o tão amaldiçoado regatão vinha salvá-los [...]”.[8] Na consideração do narrador, essa era a verdadeira fase dos regatões, pois poderiam negociar com os pequenos seringalistas sem serem perseguidos e sem sofrerem fiscalização. Para o narrador, portanto, os regatões, através de seu comércio ambulante, prestaram uma ajuda aos hinterlandinos, evitando a morte por doenças, uma vez que não lhes chegava qualquer assistência oficial.

            O enredo do romance prossegue arrolando as conseqüências da crise na capital e nas regiões dos seringais de que são significativas as seguintes passagens:

 

Na capital em torpor, sacudida pelo temporal, desapareceram os dias faustosos da queima de cédulas para acender cigarros: os comerciantes lutavam, desesperados de receber os saldos espalhados no interior, pela simples razão de que, sem mercadorias, esse interior não poderia lutar. As sedes municipais eram uma cópia empobrecida da capital.[9]

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[...] Seringais, campos, embarcações, casas-de-farinha, engenhocas respondiam pelas dívidas; agricultores perdiam as posses, onde lutaram anos e anos, tentativas de pequenas indústrias caseiras cediam aos impostos excessivos[...]

[...]



[1] Ibid., p. 171.

[2] Álvaro MAIA, Beiradão, p. 178-9.

[3] Ibid., p. 181.

[4] Álvaro MAIA, Beiradão, p. 223.

[5] Ibid., p. 266.

[6] Álvaro MAIA, Beiradão, p. 266.

[7] Ibid., p. 288.

[8] Ibid., p. 293.

[9] Álvaro MAIA, Beiradão, p. 291-2.