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LUCILENE GOMES LIMA

 

A rendição ao instinto e o reconhecimento da humanidade daqueles que não compartilhavam dos privilégios monárquicos ou os defendiam são interdependentes à medida que Alberto só reconhece essa humanidade após passar pela mesma degradação por que passaram os outros. Como os outros seringueiros, ele é dominado pelo instinto, sua natureza superior sucumbe da mesma forma que a natureza dos outros por ele considerada inferior: “ ‘Sou um miserável e um porcalhão como os outros’ ”[1]

            Cabe notar que a personagem atribui a vitória do instinto ao meio. Ante o meio bárbaro, de nada adianta ao homem lutar, sua rendição é inevitável:

 

[...] Afirmava a si mesmo que a responsabilidade não era dele, era do meio, era essencialmente da Natureza, [...] Um instante, às suas faces, agora freqüentemente barbeadas pelo filho de nhá Vitória, sobrepuseram-se as faces sujas de barba que ele e os outros seringueiros traziam, desmoralizadamente, em Todos-os-Santos, durante a semana inteira, por vezes durante semanas a fio. ‘E para quê o contrário, se todos eles eram vítimas, se não havia ali presenças femininas a estimularem a presunção dos homens, se não havia exemplos a seguir, para quê se lentamente a selva impunha o regresso à negligência, o retrocesso dos civilizados, como se estivesse empenhada em reincorporá-los na selvageria de onde se tinham evadido?’[2]

 

            É a selva também a responsável pela truculência humana, o patrão se alia a ela para executar sua obra de escravidão. Nesse ponto, a reflexão de Alberto nega que a injustiça decorra da relação entre os seres humanos e a atribui ao papel implacável do meio que degenera o humano, fazendo com que não se pertença nem se domine.

            O processo de aprendizagem de Alberto, compreendendo a sua tomada de consciência sobre o sistema de injustiça em que está calcado o funcionamento do seringal, a reavaliação de suas convicções políticas, mostra-se concretizado quando o principal motivo que o infelicita cessa. Podendo deixar o seringal e a selva, ele se permite uma nova mentalidade. Não mais acredita que a evolução da humanidade dependa das velhas castas e de seus direitos adquiridos, visualiza que a vida humana só transporá o simples rastejar, se os “velhos processos” forem abandonados e novas experiências tentadas: “[...]‘Não era, decerto, no que estava feito, era no que estava por fazer, que o homem viria a encontrar, talvez, o melhor de si próprio’ ”.[3]

            No diálogo que mantém com Juca Tristão, sente-se à vontade para admitir que não se considera mais nem monárquico nem republicano e que almeja “justiça para todos”. Faz um prognóstico que o patrão não entende, comunicando que sonha com a evolução do ser humano mas que acredita ser a evolução lenta e a sede de justiça mais profícua.

            A transformação de Alberto, compreendendo uma reflexão e uma prática não é completa, seu individualismo se sobrepõe ao seu senso de justiça social. A decisão de ajudar Firmino a fugir do seringal, fornecendo a lima para cortar as correntes da canoa na qual ele pretende fugir revela-se um ato temerário, uma vez que ajuda o amigo e considera justo que ele deseje a liberdade, mas teme se comprometer, arriscando seu futuro. Quando Firmino e os demais seringueiros fugitivos são capturados, vem-lhe o receio de que se descubra que ele teve participação na fuga. Ao tomar conhecimento do castigo imposto aos fugitivos, ele se horroriza, mas se cala. Não defende os seringueiros, apesar de estar convicto de que eles nada devem, não ousa questionar o patrão. Sabe que reagir significará perder a chance de partir, de recomeçar sua vida em Portugal e terminar seus estudos.

            Seu comportamento em defesa da monarquia fora diferente. Pelos princípios monárquicos, arriscara-se, exilara-se, afastara-se da mãe, da pátria. Como o pai, que não traíra esses princípios nem mesmo para ter uma vida mais cômoda, aceitando cargos oferecidos pelos republicanos em troca de adesão, ele defendeu a monarquia veementemente.

            A mudança de mentalidade ocorrida no seringal não leva de fato a uma ação em favor da justiça social, da “justiça para todos”, aspiração que ele revela ter ao patrão. Existem motivos que justificam a omissão de Alberto. Não há condições objetivas para que ele possa reagir contra as injustiças que presencia no seringal. Está totalmente isolado, não tem apoio de ninguém. Na revolta de Monsanto, ele contava com o apoio de outros que pensavam como ele, jovens dispostos a se insurgir contra o regime republicano. O enredo do romance demonstra que Alberto não encontra apoio nem no guarda-livros nem no seu substituto de balcão. O primeiro parece-lhe também insatisfeito com a tortura dos seringueiros, mas como ele, teme se envolver;  o segundo age como um capacho do patrão.

            Ao final do romance, a justiça será feita pela personagem menos provável de praticá-la: o negro Tiago, submisso a Juca Tristão a ponto de oferecer a cabeça como suporte para o objeto com o qual ele pratica o tiro ao alvo, mas não capaz de tolerar no seringal as práticas de tortura empregadas durante a escravidão negra. O fogo ateado por Tiago tem como principal objetivo atingir  Juca Tristão, pois tranca as portas do barracão, impedindo que o seringalista possa sair. Desse modo, a destruição se faz pela via mítica do fogo e atinge a fonte da injustiça.[4]

            O percurso do enredo de A selva informa o assunto e a conseqüente organização do romance. De acordo com o que expusemos, A selva faz a abordagem dos principais tópicos de um romance do “ciclo da borracha”. Grosso modo, temos conhecimento da saga de uma personagem recrutada para o seringal e o detalhamento das condições de viagem, comum a muitas obras, a passagem pelo centro e depois pela margem. No centro, são abordados assuntos como o trabalho do seringueiro, sua vida e suas privações, principalmente a privação sexual, as ameaças do meio assombroso e dos seus habitantes selvagens; na margem, focalizam-se os motivos que geram o sofrimento e a escravidão dos seringueiros, trabalhadores que não progridem: a extorsão através do aviamento, o poder do seringalista que controla com mão de ferro o dia-a-dia no seringal, o seu enriquecimento, em contraste com a pauperização dos seringueiros.

Numa consideração inicial, em termos de conteúdo, A selva não apresenta uma abordagem diferenciada quanto às obras da primeira fase do ciclo nem quanto às análises empreendidas por alguns autores em obras não ficcionais. O escorchante sistema extrativo já havia sido analisado por Euclides da Cunha em À margem da história; os problemas da escassez da mulher e da sua conseqüente negociação foram expostos por Alberto Rangel e Carlos de Vasconcelos. Através da escritura desses autores, das passagens literárias às mais informacionais, tinham sido expostos os principais aspectos que iriam caracterizar a abordagem sobre o ciclo. Salientamos que, apesar disso, A selva atinge uma maior compreensão e aprofundamento do caráter documental e histórico do ciclo. Dentro da temática histórica, é a obra que melhor contempla todos os aspectos. Da viagem do recrutado à revolta representada individualmente pela personagem Tiago, A selva fornece um amplo painel para entendimento do processo econômico do ciclo através do discurso romanesco. A obra apresenta os principais atores envolvidos nesse processo. Os tipos, como o tio Macedo, que se comunicam com o migrante ainda antes de ser seringueiro e que também o extorquem quando ele consegue ganhar algum dinheiro e volta à cidade; o aviador, representado pela personagem do Comendador Aragão, aventureiro português que faz fortuna; o seringueiro nordestino (Firmino, Agostinho); o seringalista (Juca Tristão); seus auxiliares (Balbino, Caetano, Binda); o filho do seringalista (Juquinha); o agregado (Tiago), que não participa do processo de extração, mas tem importância na vida do seringal[5]; o caboclo (Lourenço), que no romance é o contraponto para os arrivistas, pois não é movido pelo desejo de ganhar dinheiro; o guarda-livros (Guerreiro), uma personagem bem delineada, e o estrangeiro, protagonista (Alberto) e personagem secundária (Elias), aparecida já no fim do romance.

            A preocupação de Ferreira de Castro de dar ao romance um plano verossímil e bem arquitetado aproxima-o do documentário. Nas palavras de Márcio Souza, o romance atinge a mesma precisão de um “relatório crítico” e consegue resumir “os trinta anos de loucuras nos seringais”.[6]

            Em relação ao epigonismo característico da primeira fase, ao qual já nos referimos na introdução desse capítulo, A selva dele se afasta, haja vista o autor Ferreira de Castro não estar inserido num mesmo contexto de produção, tal como Cunha, Rangel e Vasconcelos. Desse modo, a criação romanesca de Ferreira de Castro se origina fundamentalmente do fato de necessitar pôr em cena o mundo do seringal, fruto de sua vivência, como ele próprio informa. Para que Ferreira de Castro desse continuidade a um discurso literário, seria necessário que representasse o trabalho continuado de vários romancistas num mesmo contexto de produção, fosse esse trabalho de caráter semelhante ou antagônico.[7] O que não significa, por outro lado, que a obra A selva não possua expressão amazônica. Contexto de produção deve ser entendido como as condições e as motivações que levam o autor a criar, que se distinguem de ambiente que ele efetivamente enfoca.



[1] José Maria FERREIRA DE CASTRO,  A selva,  p. 232.

[2] Ibid., p. 249.

[3] Ibid., p. 244.

[4] Em seu livro Amazônia, mito e literatura, Marcos Frederico Krüger salienta: “o fogo como elemento de destruição é, tal como o dos duplos, motivo mitológico bastante utilizado na produção literária [...]” ( p. 177).

[5] O agregado é personagem recorrente na ficção do ciclo. No romance Terra de ninguém, é Epifânio, negro que atua como feiticeiro no seringal; em Dos ditos passados nos acercados do Cassianã, é o índio Pacatuba, afilhado do seringalista; em Coronel de barranco, Inácio, caboclo que vem parar no seringal após lutar junto a Plácido de Castro. Geralmente aparecem como rebotalhos devotados e fiéis, mas em romances como A selva e Dos ditos passados nos acercados do Cassianã revoltam-se e atentam contra a vida do patrão.

[6] Márcio SOUZA, A expressão amazonense: do colonialismo ao neo-colonialismo,  p. 137.

[7] Essa premissa para criação de uma novelística  é exposta por Alejo Carpentier em Literatura e consciência política na América Latina ( p. 10).