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LUCILENE GOMES LIMA

Numa consideração inicial, em termos de conteúdo, A selva não apresenta uma abordagem diferenciada quanto às obras da primeira fase do ciclo nem quanto às análises empreendidas por alguns autores em obras não ficcionais. O escorchante sistema extrativo já havia sido analisado por Euclides da Cunha em À margem da história; os problemas da escassez da mulher e da sua conseqüente negociação foram expostos por Alberto Rangel e Carlos de Vasconcelos. Através da escritura desses autores, das passagens literárias às mais informacionais, tinham sido expostos os principais aspectos que iriam caracterizar a abordagem sobre o ciclo. Salientamos que, apesar disso, A selva atinge uma maior compreensão e aprofundamento do caráter documental e histórico do ciclo. Dentro da temática histórica, é a obra que melhor contempla todos os aspectos. Da viagem do recrutado à revolta representada individualmente pela personagem Tiago, A selva fornece um amplo painel para entendimento do processo econômico do ciclo através do discurso romanesco. A obra apresenta os principais atores envolvidos nesse processo. Os tipos, como o tio Macedo, que se comunicam com o migrante ainda antes de ser seringueiro e que também o extorquem quando ele consegue ganhar algum dinheiro e volta à cidade; o aviador, representado pela personagem do Comendador Aragão, aventureiro português que faz fortuna; o seringueiro nordestino (Firmino, Agostinho); o seringalista (Juca Tristão); seus auxiliares (Balbino, Caetano, Binda); o filho do seringalista (Juquinha); o agregado (Tiago), que não participa do processo de extração, mas tem importância na vida do seringal[1]; o caboclo (Lourenço), que no romance é o contraponto para os arrivistas, pois não é movido pelo desejo de ganhar dinheiro; o guarda-livros (Guerreiro), uma personagem bem delineada, e o estrangeiro, protagonista (Alberto) e personagem secundária (Elias), aparecida já no fim do romance.

            A preocupação de Ferreira de Castro de dar ao romance um plano verossímil e bem arquitetado aproxima-o do documentário. Nas palavras de Márcio Souza, o romance atinge a mesma precisão de um “relatório crítico” e consegue resumir “os trinta anos de loucuras nos seringais”.[2]

            Em relação ao epigonismo característico da primeira fase, ao qual já nos referimos na introdução desse capítulo, A selva dele se afasta, haja vista o autor Ferreira de Castro não estar inserido num mesmo contexto de produção, tal como Cunha, Rangel e Vasconcelos. Desse modo, a criação romanesca de Ferreira de Castro se origina fundamentalmente do fato de necessitar pôr em cena o mundo do seringal, fruto de sua vivência, como ele próprio informa. Para que Ferreira de Castro desse continuidade a um discurso literário, seria necessário que representasse o trabalho continuado de vários romancistas num mesmo contexto de produção, fosse esse trabalho de caráter semelhante ou antagônico.[3] O que não significa, por outro lado, que a obra A selva não possua expressão amazônica. Contexto de produção deve ser entendido como as condições e as motivações que levam o autor a criar, que se distinguem de ambiente que ele efetivamente enfoca.

            Um dos diferenciais que apontamos na obra de Ferreira de Castro quanto à produção desses outros autores é a linguagem. A selva é escrita num estilo límpido, preciso e objetivo. Algumas passagens descritivas do romance ostentam a preocupação com o detalhe, mas não transmitem informações através de torneios sintáticos característicos a Cunha e Rangel. A clareza de linguagem apresentada por Ferreira de Castro distingue-se mesmo em comparação aos outros autores portugueses. Para Brasil, a sua escrita despoja-se da herança de escritores como Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano, Eça de Queiroz, Fialho de Almeida, pois opta por não explorar a opulência verbal ou o vernaculismo, preferindo um estilo “rico da seiva da vida, sem artificialismo.”[4]

            Num plano, porém, a expressão lingüística de Ferreira de Castro e de Euclides da Cunha e seus epígonos confluem: na criação de um discurso voltado para as excentricidades do meio amazônico.[5] Embora sem a grandiloqüência destes, Ferreira de Castro expressa os mesmos espasmos diante da natureza assombrosa, de sua fantasmagoria de luzes e sombras, seus silêncios inquietantes e seus ruídos assustadores, suas árvores portentosas e seu entrançado de cipós traiçoeiros, tudo concorrendo para a tese apresentada no romance de que o ambiente amazônico animaliza o ser humano: “[...] o homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino aquele despotismo. O animal esfrangalhava-se no império vegetal e, para ter alguma voz na solidão reinante, forçoso se lhe tornava vestir pele de fera [...]”.[6]

            A selva distingue-se das obras da primeira fase como distinguir-se-á também de obras da fase posterior por apresentar um plano narrativo que não se detém no decalque de um aspecto do ciclo, abordando-o superficialmente. O patrão seringalista articula-se num grupo econômico, possibilitando a compreensão do significado de seu papel nesse grupo. Apresenta-se para além do estereótipo de um homem mau; é a representação de um homem enriquecido pela super exploração do trabalho de outros; é o patrão que defende a sua riqueza acumulada e não pode prescindir de sua fonte geradora, tal qual depreende-se deste trecho do romance em que encolerizado com a fuga dos seringueiros, Juca Tristão toma conhecimento das suas “dívidas” acumuladas:

 

Inclinado sobre o ‘contas-correntes’, Alberto elucidou:

- O Manduca devia um conto e setecentos e vinte e três... O Firmino um conto e duzentos... Quem eram os outros?

- O Romualdo e o Aniceto – comunicou Balbino.

Alberto folheou de novo:

- O Romualdo, dois contos e seiscentos e quarenta...

Juca voltou a exaltar-se:

- Dois contos e seiscentos! Cachorro! Cachorro! E eu a ter pena dele! Sou tolo mesmo! Vinha chorar para o pé de mim e ...



[1] O agregado é personagem recorrente na ficção do ciclo. No romance Terra de ninguém, é Epifânio, negro que atua como feiticeiro no seringal; em Dos ditos passados nos acercados do Cassianã, é o índio Pacatuba, afilhado do seringalista; em Coronel de barranco, Inácio, caboclo que vem parar no seringal após lutar junto a Plácido de Castro. Geralmente aparecem como rebotalhos devotados e fiéis, mas em romances como A selva e Dos ditos passados nos acercados do Cassianã revoltam-se e atentam contra a vida do patrão.

[2] Márcio SOUZA, A expressão amazonense: do colonialismo ao neo-colonialismo,  p. 137.

[3] Essa premissa para criação de uma novelística  é exposta por Alejo Carpentier em Literatura e consciência política na América Latina ( p. 10).

[4] Jaime BRASIL, Ferreira de Castro: a obra e o homem,  p. 47.

[5] Sobre as fontes da engendração desse discurso, ver: Neide GONDIM, A invenção da Amazônia, 1994.

[6] José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 114.