NEUZA MACHADO: O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE
SOBRE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL

“O morno rio ressurge, como látex do sangue aquecido”. “Rio”, “látex” e “sangue”. Recupero Bachelard. Encontro-me às voltas com a palavra “rio”, colocada comparativamente ao “sangue” e ao “látex”, indistintamente, neste parágrafo sobre o amor transcendental entre as duas indiazinhas Numas. A palavra “rio” associada ao “sangue” e ao “látex” está ali subentendida como um “sangue maldito”, à moda de Poe, ou como “um sangue valoroso”, à semelhança de Paul Claudel? Penso que este “rio” em especial possui as qualidades simbólicas referentes às três dimensões - sócio-substancial, mítico-substancial e ficcional - desta obra literária pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração, ou seja, a palavra “rio” tanto poderá ser avaliada pelo plano subjetivo quanto pelo plano objetivo ou pelo imaginário-em-aberto do narrador principal.
Pelo ponto de vista da objetividade, “o morno rio ressurge, como látex do sangue aquecido”, do “sangue vivo”, “valoroso”, ligado à “carne e à alma”, repleto de “virtude e de espírito”, “o ardente sangue obscuro” do comum brasileiro (historicamente, pouco conhecido, seja ele seringueiro, índio, bugre ou caboclo; masculino ou feminino). O látex das árvores da borracha intimamente associado ao sangue valoroso daqueles trabalhadores/seringueiros que deram a própria vida, estagnada “no mudo e no nulo do anônimo de uma monotonia circular e estéril, de uma mecânica vida mascarada de impessoal catástrofe”, “condenada a morrer de malária no antro da floresta comida de bicho” . “Rio”/Floresta como “antro”, ou seja, lugar escuro e profundo que serve de covil às feras e de refúgio aos ladrões e salteadores. Aqui o “consciente intervém”, por que este rio de sangue e látex propicia uma “lembrança maldita”, é um “sangue inominável”, não há como nomeá-lo como “desejável”, por ser algo vil e revoltante.