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 NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

 

 

II – um sertão inesquecível

 

II.1 - Sertão: Casa da Infância

 

 

As máscaras primordiais e ficcionais do universo da primeira fase criativa são a garantia de segurança emocional do Artista sertanejo que convive com os valores da modernidade. Disfarçado de narrador do sertão, ou mesmo diluído em seus personagens, ele retoma seu mundo de origem e se protege das prováveis críticas depreciadoras. Essas máscaras, que garantem sua segurança emocional no mundo moderno, têm a vantagem de se situar num plano diferente do plano da história contínua. A máscara virtual, diferente da máscara real, que "não se engaja verdadeiramente num processo de dissimulação"46, que é a pura negatividade do ser, que permite o mascarar-se ou ser desmascarado, na fenomenologia do ser que se dissimula, representa o desejo de alcançar a segurança total da máscara. Enquanto diversas máscaras habituais, são "incessantemente tomadas e retomadas, sempre incoativas"47, sempre prontas a um novo começo de proteção. O ficcionista, indiscutivelmente criativo, se protege das situações insólitas do cotidiano moderno, recriando o sertão da infância e todos os seus habitantes. Esses habitantes do sertão, recriados, são partículas íntimas de seu interior sertanejo. A dissimulação do Artista Literário, sertanejo e pós-moderno, é uma conduta intermediária, oscilando entre o oculto e o visível. O Artista se oculta nos meandros de sua infindável narrativa, ou seja, em todas as suas narrativas da fase criativa, ao mesmo tempo em que revela sua face verdadeira.

 

Posteriormente, mostrando o sertão da infância, já transmutado pela matéria poética das recordações, ele se sente intimamente protegido e reconfortado. Ele agora está confortavelmente instalado no cogito(3) da individualidade consciente e não pretende ultrapassar esse limite, que ainda possibilita uma saudável convivência com o grupo da alta intelectualidade. Subir mais um degrau seria ultrapassar os limites vitais e se projetar no vazio da pura espiritualidade, seria propiciar uma cisão irreversível com o mundo dos valores aceitáveis, o mundo dito normal. Logo, é um indivíduo ainda aceito pelo grupo, ainda não marginalizado, que se vislumbra na última fase, mesmo apreendendo-se, nesta última fase, narrativas de alto teor de insolidez, tais como "Meu tio, o Iawaretê", "Reboldra", "Mais meu Sirimim" e outras que compõem o corpus de Essas histórias, Tutaméia e Ave, palavra.

 

Os personagens da primeira fase criativa (não estou a referir-me à primeira fase ligada à imaginação formal, imaginação linear, registrada nas narrativas de Sagarana, excetuando-se naturalmente a última narrativa A hora e vez de Augusto Matraga) fornecem a máscara primordial do ficcionista do sertão. É sua fisionomia de homem do sertão que se encontra dissimulada ao longo das narrativas A hora e vez de Augusto Matraga e Grande Sertão: Veredas; são suas vivências primeiras que se destacam e se escondem; são fatos acontecidos e desrealizados pela ação do tempo, mas poetizados no plano das recordações e dos sonhos bem sonhados. A hora e vez de Augusto Matraga e Grande Sertão: Veredas marcam um momento de mudança narrativa, revelando a relação de profunda integração do escritor com sua obra e, por acréscimo, com o sertão material.

 

As máscaras são sonhos fixados e os sonhos são máscaras fugazes em movimento, máscaras fluidas que nascem, representam sua comédia ou seu drama, e morrem.48

 

Para penetrar-se "na zona onde os acordos são incessantes"49, ou seja, ao centro no qual se desenvolve a verdadeira dialética da simplificação e da multiplicidade, segundo Bachelard, é necessário juntar a máscara inerte ao rosto vivo. O rosto vivo fornece os traços da fisionomia, possibilita a interpretação da máscara virtual, e o ato de interpretar a máscara virtual obriga o intérprete a penetrar numa dimensão diferente, na qual a formação da idéia e a sua representação "permutam infindavelmente suas ações"50.

 

Na fase seguinte, a partir de Primeiras estórias, a dialética da verdade e não-verdade se instaura nos escritos de Guimarães Rosa. Verdade e fantasia se misturam sob os ditames dos sonhos poéticos-ficcionais. Os personagens (verdades de um sonhador eu sertanejo) são máscaras profundamente sentidas pelo ficcionista e transmitidas ao leitor, compactuador e colaborador de seu ato de narrar; assim, são máscaras virtuais ativas, recriadas nos momentos de repouso fervilhante e concretizadas no instante seguinte da consciência singular, livres das conceituações do tempo vital. Essas máscaras ativas, ficcionais, se adaptam ao demiurgo que as criou, pois este, à semelhança do psiquiatra que "deve viver a máscara do doente, como deve viver os sonhos do doente"51, deve ele também viver a máscara de seus personagens, como deve viver também os sonhos dos personagens.

 

Nessa zona intermediária, o demiurgo detectou sua própria realidade psíquica de homem que se quer sertanejo. Servindo-se da ficção, reformou e formou sua própria máscara virtual, ou seja, o rosto, verdadeiro, do sertanejo que poderia ter sido no âmbito das probabilidades de vida; extraiu do passado, pela imaginação, verdades que estavam escondidas; pode transformar essas verdades em discurso ficcional, recriando as imagens do coronel autoritário, dos jagunços animalescos, ou mesmo, do cidadão do sertão, oscilando entre o primitivo e a pós-modernidade.

 

Que nos seja permitido assinalar de passagem a importância de uma fenomenologia do artificial. O ser que quer o artifício tem necessidade de uma tomada de consciência muito nítida. Essa tomada de consciência é tanto mais vigorosa quanto mais fluente é seu objeto. No problema do ser que se dissimula vê-se em ação a manutenção de uma consciência de dissimulação. Deve-se reconhecer, pois, nas interpretações de máscaras, maior estabilidade do que em outros fantasmas.52

 

Oferecer autenticidade ao artificial e inseri-lo no mundo dos fenômenos exige capacidade criativa. A criação literária, para manifestar-se com grandeza, necessita de um talento criativo extraordinário, reformulador de suas próprias realidades psíquicas. O Artista (aquele produtor de autêntica Arte Literária), agora indivíduo consciente, não aceita mais a convivência insossa com suas máscaras reais. Retomar ficcionalmente o rosto primitivo, diluindo-o em seus personagens, é um exercício de poder. É o poder daquele que se retrocede ficcionalmente ao passado e retoma o início de sua trajetória de dissimulação. Recupera conscientemente a máscara virtual, retirando-a do passado sob a forma de narrativa, e fragmenta-a em diversas novas máscaras. Cada personagem revela parcialmente um pouco do que foi visto e vivenciado nas origens. Cada personagem é parte viva de suas primeiras e verdadeiras realidades psíquicas. O Artista tem plena consciência dessa nova e intermitente dissimulação de seu próprio eu. Todos os seus personagens são partículas vivas de seu íntimo, por conseguinte, eles também, máscaras virtuais, passíveis de alcançarem vida estável no plano das probabilidades fenomênicas.

 

Em meio a suas diversas máscaras sociais, quis (e conseguiu) retomar o rosto da infância, com a colaboração da Arte Literária. Com esta atitude, refortaleceu-se socialmente, idealizando o sertão, recuperando-o sob novas imagens, fornecendo novos traços decisivos para a fisionomia do sertanejo secularmente rejeitado na hierarquização social.

 

A máscara nos ajuda a afrontar o futuro. É sempre mais ofensiva do que defensiva. (...) Se forçarmos um pouco as relações entre a figura e o rosto, se integramos a máscara, parece que a máscara pode ser a decisão de uma vida nova. Ela liquidaria de uma vez o ser que se oculta. Seria um motivo para afirmar uma segunda vida, um renascimento. Ainda que se examine o problema de muitas maneiras, é necessário chegar à mesma conclusão: a máscara é um instrumento de agressão; e toda agressão é uma atuação sobre o futuro.53

 

No decorrer da Entrevista ao alemão Günter Lorenz, Guimarães expõe suas convicções genuinamente verdadeiras. A retomada de seu antigo rosto, sustentada na sua criação literária, conscientizou-o de seu poder individual. Agora, o ser especial, oriundo de um pequeno burgo do sertão, não necessita defender-se do grupo citadino debaixo de diversas máscaras sociais. O escritor (médico, diplomata, soldado, poliglota e outros diversos talentos) sabe que já está temporalmente afastado de suas origens, mas sabe também que já adquiriu o direito de se nomear sertanejo, orgulhosamente afrontando um grupo de intelectuais pernósticos, que, segundo suas próprias palavras, só sabem transmitir “bolas de papel”54. Nesta vida nova, já conceituado pela elite sócio-intelectual e, inclusive, por esse mesmo grupo que finge não perceber a agressão do Artista, liquida de uma vez o que buscou ocultar em anos de convivência com o mundo citadino. Afirma assim uma nova vida, um renascimento, uma adesão aos planos superiores da pura individualidade.


II.3 – SERTÃO: CENÁRIO FICCIONAL DA VERDADEIRA

            REPRESENTAÇÃO DO ARTISTA

 

Na introdução de A REPRESENTAÇÃO DO EU NA VIDA COTIDIANA, Erving Goffman55, teorizando sobre o ponto de vista do grupo em relação ao indivíduo, informa que seu objetivo é definir a interação (influência) face a face, "a influência recíproca dos indivíduos sobre as ações uns dos outros, quando em presença física imediata"56. Diz ainda que "uma interação pode ser definida como toda interação que ocorre em qualquer ocasião, quando, num conjunto de indivíduos, uns se encontram na presença imediata de outros"57. Goffman realça o objetivo já no final da Introdução, depois de desenvolvê-lo implicitamente ao longo do conteúdo introdutório.

 

Antes, já informara sobre a atuação do indivíduo na presença de outros e que os outros, ao se aproximarem do indivíduo, procuram saber o máximo a seu respeito, interesses gerais, tais como se possui uma boa situação sócio-econômica, o que pensa de si e dos que o rodeiam, se é confiável. Essas informações, segundo o autor, definem a situação do indivíduo perante os outros e dos outros ante o indivíduo. É nesse momento que a interação será definida. Caberá ao indivíduo, que, no momento, se encontra sob suspeita, influenciar positivamente ou não o grupo que o examina. De acordo com a atitude do examinado, os examinadores se convencerão ou não da validade dos esforços pessoais para se fazer admirado ou respeitado. A impressão positiva é importante nesse momento de influência face a face, porque é exatamente nesse momento que os outros confiarão na informação que o sujeito procura transmitir. Portanto, expressão e impressão do e sobre o indivíduo são fatores prioritários para que o grupo infira positivamente e confie nele. Para que receba confiança, o examinado terá de expressar-se convincentemente, mesmo que, no fundo, transmita informações falsas. A influência face a face necessita de expressões que convençam. O sujeito emitirá tais expressões, mesmo que sejam falsas. Tais dissimulações são atitudes típicas do ator, que procura se utilizar das expressões que emite. A expressão transmitida se vale da comunicação, e esta se faz quando o indivíduo se encontra na presença de outros, transmitindo confiança ou rejeição, de acordo com as deduções do grupo. Procurando explicar melhor, Goffman divide a expressividade do indivíduo em duas categorias opostas: expressão que transmite e expressão que emite. Dentro da categoria da expressão que emite, estariam as dissimulações próprias do ator; na categoria da expressão transmitida, estariam as fraudes, abrangendo os símbolos verbais, usados propositadamente no intuito de transmitir impressões falsas.

 

Goffman, num segundo momento da Introdução, muda o pólo de concentração de sua tese, deslocando-se para o ponto de vista do indivíduo. Antes, teorizara sobre o ponto de vista do grupo. Por este ângulo, o indivíduo que se encontra diante do grupo, examinado pelo grupo, "pode desejar que pensem muito bem dele, ou que pensem estar ele pensando muito bem deles, ou que não cheguem a ter uma impressão definida"58; pode trapacear, confundir, induzi-los a erro. Conscientemente, o sujeito direciona as atitudes do grupo em relação a si mesmo, manipula as inferências do grupo, demonstra possuir grande influência ante os outros e, conseqüentemente, (segundo minhas deduções) terá aos poucos como demonstrar poder.

 

Falando ainda sobre expressões transmitidas e expressões emitidas, Goffman procura delimitar o seu trabalho, informando que se ocupará primordialmente com as expressões emitidas, ou seja, a atitude do indivíduo-ator diante de um grupo-platéia. Exemplificando suas idéias, cita um incidente romanceado, um episódio sobre um inglês em férias em uma praia, na Espanha. Narra as atitudes de Preedy (um indivíduo-ator e suas expressões emitidas) para se fazer notar, por meio de vários rituais, como um passeio pela praia que virara corrida e mergulho direto na água, a forma de nadar que consistia num apelo para ser visto, e outras ações ritualísticas, visando impressões múltiplas do grupo-platéia. Demonstra que as impressões variam e nem sempre coincidem com a esperada pelo indivíduo. Às vezes ele consegue projetar uma boa impressão e ser compreendido, às vezes não.