1.1 - SEMIOLOGIA DO DISCURSO FICCIONAL
 
NEUZA MACHADO
 
 
Preliminares - A primeira parte desta dissertação sinaliza-se como um repasse semiológico, que tem por fim fundamentar as minhas teorizações (ou interpretações) sobre o narrador de A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa. O desenvolvimento interativo de minhas idéias sobre o narrador do século XX inicia-se na segunda parte: Sociologia do Discurso Ficcional.
 
Todos os elementos que constroem esta minha teoria sobre este já nomeado narrador (a semiologia de Anazildo Vasconcelos e Greimas, a sociologia de Max Weber, as teorias de Georg Lukács e Lucien Goldmann, Benjamin, Lefebve, além da verificação hermenêutica) se encontram aqui modificados, isto é, apropriei-me de parte deste arsenal de idéias, normas científicas, desenvolvimento de estudos teóricos, na tentativa de construir, a partir daí, um novo e próprio sistema, avançando no espaço de minhas indagações prioritárias. Esta observação se faz necessária uma vez que utilizei e reuni conteúdos de áreas diversas e aparentemente contraditórias. A semiologia é uma ciência quase neutra. Max Weber é um sociólogo considerado (por Lukács) burguês. Lukács, Goldmann e Benjamin são, cada um a seu modo, pensadores marxistas. A hermenêutica é de certo modo uma fenomenologia. São ciências oriundas de diversas diretrizes teórico-críticas e que aparecem aqui como empréstimos, já que abordo o texto ficcional por várias perspectivas, na tentativa de destacar os seus diversos sentidos e o valor de seus fundamentos.
 
Posso dizer que esta minha interpretação ― que tem por base estudos analítico-semiológicos ― é parenta de uma possível genealogia à maneira de Nietzche. Mas, prefiro dizer que o objeto de estudo sempre sugere o método de abordagem, ou a pluralidade de métodos exigidos para que se consiga compreender aquilo que estou, em toda parte destas páginas, tencionando dizer.
 
Segundo Perelman[1], a pluralidade das disciplinas nos meios acadêmicos corresponde a uma pluralidade de métodos. É nosso tempo um tempo de pluralismo, esta espécie de doença de um mundo em fragmentação. São teorias que disputam seu lugar no cenário e na atenção do auditório. O pensamento moderno sofre de hiperrelativismo na diversidade da relação entre realidade e teorias, na luta entre sistemas diferentes, nas diferenças de interpretação. A teoria literária do final do século XX e deste início de milênio é uma pluralidade teórica que inclui a pluralidade do real. Esse esfacelamento apontaria para o fim da ciência, talvez até para o fim da teoria literária, de tal modo que a palavra interpretação quase signifique o direito de opinar, numa opinião subjetiva e não científica. Ora, a opinião é justamente o erro do pensamento que penso evitar.
 
O fragmentado e pluralista universo ficcional do século XX foi um reflexo desta interação problemática entre o Homem (também fragmentado e pluralista) e seu Mundo substancial, e ainda o é neste início de século XXI. No intuito de explicar melhor, refaço meu pensamento: da mesma forma em que há ações recíprocas entre o Homem (seus valores individuais) e o Mundo (com seus valores codificados, culturais e sociais), e circunstâncias impelindo o Homem a buscar valores que existiam em um passado distante (e que não existem mais, graças a uma tecnologia incapaz de sustentá-los convincentemente), assim foi o universo ficcional dos anos noventa, e assim permanece neste início de século XXI (Terceiro Milênio).
 
Agora a humanidade vive momentos de desestruturação, procurando o equilíbrio no Caos. Não há soluções simples. O Homem é um ser fragmentado que se autoquestiona e questiona o Mundo circundante, sem encontrar respostas em seu espaço conceitual.
 
Inserido neste processo desestruturante localiza-se o discurso ficcional do Narrador da centúria passada, o qual, nestas páginas iniciais em que apoio-me na orientação semiológica, será o foco desta análise. Por esta perspectiva, detecta-se o motivo que faz esta narrativa aqui assinalada, de Guimarães Rosa (inserida também no corpus de Sagarana), não se enquadrar no que comumente se designa como narrativa tradicional experiente (se penso na nomenclatura de Walter Benjamim). Eis o motivo, de acordo com os dogmas semiológicos: Personagem e Espaço se encontram submetidos à lógica dos Acontecimentos desencontrados, insólitos. Como demonstrou Anazildo Vasconcelos no seu Semiotização literária do discurso não há, na ficção do século XX, propostas de narrativas centralizadas no personagem ou no espaço (Romantismo e Realismo).
 
Liberada da imposição significante do espaço e do personagem, a lógica do acontecimento, aliada ao fio narrativo, estrutura uma proposição de realidade ficcional, que o espaço não codifica, nem o personagem consegue converter em experiência individual.[2]
 
O espaço não impõe seus códigos porque estes são contraditórios, desencontrados. O personagem se desestrutura em meio à fragmentação do todo, à fragmentação interior, à fragmentação social. Há um desejo urgente de reestruturação. O personagem da ficção do século XX, de um modo geral, busca equilibrar-se, mas é impedido pela lógica do acontecimento, raciocínio particular dos ficcionistas do século próximo passado, incluindo os de agora, que buscam a coerência existencial no discurso aparentemente incoerente.
 
É por esta perspectiva de desestruturação, e no desejo de estruturar-se, que vejo as figuras do narrador e do homem modernos.
 
MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6
 

 


[1]PERELMAN, Chaim. In.: FLORES, Luiz Felipe Baeta Neves. “Pluralismo e teoria social: primeiras notas de pesquisa”. A crise da ciência. IDEIA 1 / 89.
[2]SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Semiotização literária do discurso. 1. ed. Rio de Janeiro: Elo, 1984: 58.